Acabei de ler "Antigas e Novas Andanças do Demónio" do português Jorge de Sena, naturalizado brasileiro por fuga à ditadura e depois autoexilado nos Estados Unidos pela mesma razão.
Considerado uma dos maiores escritores de ficção, ensaio e crítico de literatura português de meados do século passado, este livro é uma coletânea de contos publicados em dois editados ao longo da década de 1960 em Portugal: Andanças do Demónio e Novas Andanças do Demónio.
Os diferentes contos têm estilos diferentes, nota-se que Sena experimentou correntes literárias como o neorrealismo, o realismo mágico e o simbolismo, entre outras, e dissertou sobre temas variados: textos com personagens bíblicas e históricas, demência geriátrica e de ideologia ditatorial, solidão, erotismo e paganismo, por onde atravessam males da humanidade ou que a influenciam nesse sentido, ora com humor, ora em retrato negro, toca estilos infantis e também reservado a adultos.
Alguns contos divertem: "A Razão de o Pai Natal ter barbas brancas" onde o menino Jesus narra com inocência infantil e humor como escapou aos ardis do demónio, abre esta série e ouvi-o ainda adolescente. Foi a saudade deste texto que me fez comprar o livro e li-o no mês do centenário do nascimento de Jorge de Sena.
A velha solitária que da janela se excita a espreitar um par de jovens apaixonados com um final surpreendente; o oficial nazi que expõe a sua justificação da supremacia germânica para tolerar abusos sobre homens, mulheres e crianças de outros povos; os últimos dias difíceis, na miséria e doente, de Camões apoiado por sua mãe; e o diálogo do convertido Paulo de Tarso com um chefe da casa de imperadores como Tibério e Nero onde ocorrem atos sádicos por prazer no palácio; são contos que marcam o leitor, não pelo prazer mas pelo choque da crueza do conteúdo.
Os milagres do frade para vencer os salteadores e as embrulhadas genealógicas que o espírito da sua árvore acompanhou através de mortes e reencarnações das gentes da sua aldeia em diferentes animais típica das crenças animistas que além de lições de moral são contos atravessados por humor.
Esta edição têm ainda os prefácios originais dos dois livros originais e notas escritos pelo autor.
Jorge de Sena escreve muito bem, embora com tendência para parágrafos muito extensos com uma sequência de muitos pormenores, ideias encadeadas e riqueza lexical que exige atenção e esforço para acompanhar a narrativa, por vezes fez-me lembrar Proust, mas sem dúvida é um mestre no domínio da língua portuguesa. Espero voltar a este distinto escritor.
7 comentários:
muito triste a ditadura empurrar as pessoas para outros países. fiquei interessada pelo autor. ah, desculpe avisar das postagens. beijos, pedrita
Pelo que me apercebi no Brasil viveu por São Paulo e é um autor muito considerado no mundo cultural.
Conheço alguns poemas muitos bonitos e bem originais que foram musicados.
Deste autor só li Sinais de Fogo, mas tenho mais em fila de espera para serem lidos. Sobre este romance recordo Miguel Sousa Tavares ter dito ser o melhor da literatura portuguesa.
De Jorge de Sena guardo uma frase lapidar: «... nada escrevi que de uma vez não escrevesse e não considerasse escrito de uma vez para sempre.»
Joaquim Ramos
Sinais de Fogo anda pelo correio, tal como o conto/novela que fazia parte das novas andanças do demónio.
Sei que ele não completou o romance, mesmo assim Pedro Correia do DN recomendou-me sem qualquer hesitação.
Tenho este livro e acho que o Carlos resumiu muito bem a essência do mesmo. Também tenho os '80 Poemas de Emily Dickinson'.
Tal como o Carlos, nunca li os Sinais de Fogo, aliás disse-o lá no Delito quando o Pedro falou nele.
Talvez um dia... tanto livro já comprado e à espera de ser lido...
Um bom domingo, Carlos.
🐳
Estou a tentar parar as compras de livros, pois de facto já chegaram a várias dezenas em espera... mas à vezes não resisto e nestes dias comprei dois Jorge de Sena, incluindo Sinais de Fogo, precisamente tendo em conta o conselho do Pedro.
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