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sábado, 15 de fevereiro de 2025

"O ASSASSINO CEGO" de Margaret Atwood

 

Reli o romance "O Assassino Cego", vencedor do Booker Prize de 2000, da minha escritora canadiana favorita: Margaret Atwood, embora a primeira leitura, há já quase duas décadas, tenha sido no original em inglês, livro que possuo ainda e permitiu-me algumas comparações entre as duas versões, concluído que este é uma boa tradução para  português.

O romance inicia-se com a recordação da octogenária Iris Chase do acidente de carro de sua irmã Laura poucos dias após o termo da II Grande Guerra Mundial, estando Iris consciente que se tratou então de um suicídio. A partir desta memória com uma fotografia na mão, ela reconstitui a história da sua família e da sua vida: a vida na sua cidade natal no sudoeste de Ontário, os seus antepassados, a relação com o seu pai veterano da primeira guerra e industrial decadente, as razões do seu casamento e os litígios com a família do marido cheio de ambições políticas, a retirada da sua filha, o com foco no facto de, na sequência da morte de Laura, Iris ter publicado um livro que aquela teria deixado manuscrito, onde narra uma relação secreta de amantes com encontros em locais escondidos e que se supõe ser ela com um amigo comum de ambas as irmãs. Na intimidade os dois montavam uma história de ficção científica numa sociedade distópica, passada no planeta Zycron, onde um cego vem a ser incumbido de matar o rei de uma cidade-estado, enquanto em paralelo se preparava uma invasão externa por um povo bárbaro. Em paralelo esta narrativa será uma descoberta do amor pelo assassino e o romance tornou-se num grande sucesso, sinal de emancipação feminina e Laura um símbolo para futuras gerações de mulheres, enquanto Laura se se deixou de fora deste fenómeno literário e libertário.

Um romance que é uma matrioska russa de histórias, onde - sobre um cenário que é a história socioeconómica do Canadá, o modo de viver de uma pequena cidade do Ontário e o evoluir das mentalidades ao longo do século XX neste país - se projeta a vida de uma mulher da classe média alta provinciana com os seus temores e sujeita aos preconceitos do mundo que a rodeava, que por sua vez são transpostos para a vida da sua irmã e em seguida refletidos num romance que seria o alter ego desta, onde o amor é gozado plenamente e os anseios da juventude e os seus medos são remetidos para um planeta distante que permite por a nu os tabus terrenos que aprisionam as paixões e os vícios que molda a sociedade. Todos estes níveis contados de forma intercalada levam a que até desenrolar da última camada desta boneca russa surjam sempre surpresas e reconstruções do passado.

É uma obra com uma escrita sem pressa, tal como pode ser a monotonia da vida de uma octogenária, que não se inibe de ser crítica de todos os preconceitos e amarras da hipocrisia da moralidade social que foram caindo ao longo do século XX, para assim evidenciar que no final daquele século muito sofrimento íntimo das mulheres do passado poderiam ter sido evitados e como a sociedade facilmente cai num engano e cria mitos e heróis apenas pela aparência das narrativas.

Quando li pela primeira vez O Assassino Cego considerei uma obra que mostrava a versatilidade narrativa de Margaret Atwood, hoje, ao relê-la, já depois de ler muitas outras obras da autora, considero a sua obra literariamente mais rica e variegada. Exige alguma maturidade ao leitor para assimilar a riqueza deste romance, este não se prende a estereótipos, nem a subterfúgios fáceis para o agarrar. É uma narrativa para se ir degustando lentamente as suas mais de 600 páginas até se saborear de facto a grandiosidade deste romance que justifica ter um prémio do gabarito do que recebeu, uma obra que não precisa de receber um Nobel da literatura para estar a esse nível.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

"NEXT" de Michael Crichton

 

Resenha da capa frontal do livro

"Bem-vindo ao mundo da genética.

Acelerado, furioso, sem lei."

Em pouco tempo voltei ao escritor norte-americano criador do género literário denominado de "thriller tecnológico": Michael Crichton, agora com "Next". A trama cruza várias aventuras envolvendo investigadores genéticos concorrentes entre si, todos com ações no limite ou a ultrapassar a legalidade, nomeadamente: experiências genéticas com pessoas com consequências imprevisíveis; criadores de híbridos de genes humanos com animais; lutas por patentes de genes humanos com potencialidades de cura ou causadores de doenças; a utilização abusiva de pessoas como mercadoria sua, desrespeitando os direitos destas e batalhas destas perante a justiça num quadro legislativo cheio de imperfeições e de ética duvidosa.

Assim, a histórias conduzem a situações extremas de suspense de batalhas legais, animais semi-humanos interventivos, raptos de pessoas cujo corpo possui genes patenteados, envelhecimentos precoces imprevistos, animais que são filhos de gente e tornam-se personagens humanas, tudo isto num caos que é mais uma alerta para os riscos da investigação genética sem regras legais claras, sem bom senso, cientistas sem ética na sua investigação e busca de financiamentos numa sociedade onde a comunicação social especulativa agrava ainda mais as situações.

Numa espécie de posfácio, Crichton fala dos principais aspetos a corrigir na legislação americana, justificando várias leis pouco éticas, nomeadamente o de alguém ou uma instituição poderem ser donos de genes naturais sem os terem criado, mas sim a natureza. Importa ter em atenção que a obra foi escrita no início do século XXI e não sei se a legislação foi melhorada, sei que na população muitos temores subsistem em torno da engenharia genética, clonagem e outras tecnologias em torno deste campo de investigação.

O desenrolar do romance intercala capítulos curtos com situações envolvendo as personagens e suas criações com pretensos artigos nos mídia que falam dos mesmos temas que se passam na narrativa, dando assim um cariz de maior abrangência dos casos e o efeito amplificador da comunicação social para o caos. No seu conjunto, o desenrolar das histórias torna-se algo caótico, mas segura o suspense quando passa de situações distintas. A obra vale mais como um alerta para a necessidade de ética e regulação neste domínio científico do que por uma narrativa bem estruturada.


sábado, 18 de janeiro de 2025

"Nexus - História Breve das Redes de Informação da Idade da Pedra à Inteligência Artificial" de Yuval Noah Harari

 

Citações

"A ascensão de máquinas inteligentes capazes de tomar decisões e criar ideias significa que, pela primeira vez na História, o poder se está a transferir dos humanos para outro agente."

"Eis o traço distintivo da Inteligência Artificial: a máquina aprende, depois age de moto próprio."

Pela terceira vez li um ensaio em ebook de Yuval Noah Harari - um historiador israelita, formado em história militar e considerado um dos filósofos internacionalmente mais influentes da atualidade - "Nexus - Uma História Breve das Redes de Informação da Idade da Pedra à Inteligência Artificial".

Em Nexus, o autor começa por definir o que é informação, o seu papel em unir as pessoas, mas destrói a ingenuidade de quem acredita que quanto mais informação mais se está perto da verdade e de se tomar as decisões certas.

O livro prossegue com uma exposição histórica de como a informação aproveitou a utilização de novas técnicas para se desenvolver e expandir-se e assim foi moldando o evoluir da humanidade, evidencia o seu papel agregador e também o seu uso para controlar a sociedade e, com exemplos minuciosamente explicados, como esta suportou perseguições desumanas e catastróficas desde a antiguidade até ao século XXI, tal como permitiu salvar pessoas, pois não só serviu transmitir conhecimento científico e foi meio para fortalecer democracias que não sobreviveriam sem uma boa rede de comunicação, como também foi usada para alimentar preconceitos e para intensificar ditaduras que a usou para subjugar a população. Paralelamente, demonstra como a Inteligência Artificial (IA) é algo completamente diferente de todas as anterior tecnologias de suporte da informação, pela primeira vez esta pode ser controlada por não humanos e age sem a consciência e os sentimentos dos seres vivos, sendo ainda capaz de aprender, replicar-se e decidir por si só e com um elevado risco de fugir ao controlo da humanidade e da compreensão desta, algo capaz de nos manipular ou mesmo nos destruir.

Como habitualmente é referido nos livros de Harari, o futuro não é determinista, existem possibilidades várias de perspetivar o futuro de como irá a IA modelar a civilização global. Neste momento considera o autor que ainda pode estar na mão dos humanos evitar uma futura escravidão da humanidade a uma entidade não biológica e conseguir-se um equilíbrio que permita a IA ser útil e ficar ao serviço do Homo sapiens. Potencialidades são muitas, mas os riscos não são menos, conforme o ensaio explica muito bem. Uma obra que é um alerta para se evitar o domínio do algoritmo inteligente sobre a vida inteligente.

Sim, gostei muito do livro, mas como já conheço bem o autor - um filósofo ateu que acredita que a capacidade dos humanos se organizarem e comunicarem entre si foi a fonte do seu sucesso-, esta obra já não me surpreendeu tanto como em Homo Deus, mas como em todos os seus livros, este mostra que a humanidade volta a ter nas suas mãos um novo meio para se autodestruir e erradicar o sucesso da espécie e agora até para se escravizar pela primeira vez a uma entidade não orgânica. 

Pessoalmente, vendo o comportamento atual de alguns proprietários de grandes empresas mundiais de novas tecnologias, eu não ando numa fase otimista.... mas recomendo a leitura e depois reflita sobre as possibilidades e riscos que nos traz a IA.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

"Maus hábitos" de Alana S. Portero

Citações

"O medo que se passa no armário fabrica monstros a partir de sombras chinesas."
"Antes de conseguirmos definir-nos, os outros desenham os nossos contornos com os seus preconceitos e as suas violências."


Acabei de ler o romance estreia da escritora espanhola Alana S. Portero: "Maus hábitos", vencedor de vários prémios literários e um sucesso editorial naquele país.
O romance conta a vida de Alex pelos seus olhos desde criança, quando toma consciência que se sente mulher. Assim, fala do bairro pobre de Madrid onde vive, descreve uma juventude envenenada pela heroína, a vida de operários e domésticas com salários de miséria, famílias com violência doméstica tolerada pelas autoridades, prostitutas e travestis alvo de preconceitos e a sua tomada de consciência de que é diferente e precisa de tomar atitudes que a protejam da discriminação. Na adolescência, enquanto vai estudando, procura longe do bairro gente para relações, conhece o seu primeiro amor decepado pela intolerância, contacta com mulheres trans que a protegem até ser vítima de uma violência homofóbica. Fechada no armário, licencia-se, arranja emprego, mas vai necessitar do apoio da família e assim volta à origem até assumir a sua condição de transgénero já em pleno século XXI.
Apercebemo-nos por pormenores que Alex será o alter-ego da escritora e portanto a obra é quase uma biografia romanceada da sua sobrevivência numa Madrid desde os primeiros anos de democracia e liberdade, mas ainda dominada pela imposição dos costumes da ditadura.
O texto, cheio de metáforas e de imagens pouco comuns por mostrar uma perspectiva diferente da generalidade das personagens habituais na literatura, possui uma escrita sensível e terna, nunca erótica, mas há ações de violência física e psicológica sobre Alex, e muitas referências a artistas da década de 1980, menções de canções e filmes que moldaram a cultura daquela década e ligações as personagens da cultura clássica e da religiosidade popular. Saliento a ternura entre os membros da sua família, num permanente equilíbrio precário entre a incompreensão e a aceitação temperada pelo amor.
Literariamente é um livro bom, fácil de ler, sentimental e acessível a qualquer leitor livre de preconceitos ou para o ajudar a se libertar destes.

sábado, 4 de janeiro de 2025

"Um animal Selvagem" de Joël Dicker

 

Regressei ao escritor suíço Joël Dicker - grande génio atual em obras de suspense de puro entretimento pela sua originalidade no modo de contar a história - com "Um animal selvagem" que comprova o estilo que descrevi.

O romance começa logo por apresentar o início de um assalto a uma joalharia em Genebra e de imediato apercebemo-nos da perfeição do planeamento do ato, só que, de de súbito, o autor faz-nos recuar 20 dias para nos apresentar as personagens que estarão envolvidas na trama: duas famílias, uma endinheirada e com vida de luxo que se amam que inclui um dos assaltantes; e outra de um polícia de intervenção que virá a descobrir o plano e deve ter a função de evitar o roubo, mas que vive num bairro humilde e onde a mulher aspira ao estilo da outra, os dois casais conhecem-se e tornam-se grandes amigos entre si nos dias que antecedem ao furto.

Depois, numa sucessão de pequenos episódios diários, vamo-nos apercebendo da vida familiar e do plano a ser montando por uns, alternando com curtíssimas cenas do desenrolar do assalto, intercalados com relatos de segredos do passado, alguns com mais de 15 anos, que levaram às personagens a alcançarem o sucesso. Entretanto, nos dias de preparação, as paixões, os ciúmes e as invejas vão minando a relação entre os vigiados, desejados e invejados e os vigilantes e assim vão-se montando armadilhas uns aos outros, além de outras personagens que interferem nesta teia, até conhecermos completamente como decorreu o roubo, o passado dos ladrões e as consequências de todas ciladas perpetradas entre os envolvidos nesta história.

Joël Dicker é um mestre em levar o leitor a deduções erradas e em criar, sequencialmente, as mais espetaculares reviravoltas no desenrolar dos acontecimentos e nas reinterpretações das pistas lançadas. Assim, o escritor nunca deixa de nos surpreender até à última página, quando se fica rendido pelas voltas que aconteceram ao longo da narrativa sem esta nunca perder a consistência. Um deleite de entretimento e suspense ao longo de um texto fácil, escorreito, sem grande virtuosismo literário, mas que é difícil parar de ler pelo entusiasmo que desperta.