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quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

"Canção do Profeta" de Paul Lynch

 

Excerto
"o profeta canta não sobre o fim do mundo mas sobre o que foi feito e o que será feito a uns mas não a outros, que o mundo está constantemente a acabar num sítio mas não noutro e que o fim do mundo é sempre um acontecimento local, chega ao nosso país e visita a nossa cidade e bate à porta de nossa casa..."

Acabo de ler "Canção do Profeta" do irlandês Paul Lynch, o romance vencedor do Booker Prize de 2023. Na trama, o partido nacionalista chegou ao poder na Irlanda, pouco depois, dois agentes batem à porta de Eilish a perguntar pelo marido, um dirigente do sindicato dos professores, então o medo entra em casa, ela tem de o proteger, bem como aos seus quatro filhos, que vão desde um jovem ainda menor até um bebé e, ainda, ao seu pai idoso e com sinais de senilidade mental a viver sozinho, mas a situação só piora: o sindicalista é levado pouco mais tarde, depois, querem recrutar-lhe o filho mais velho para o exército, o pai dela não percebe o que se passa no mundo e toma ações arriscadas, o país entra em guerra civil e todos os direitos humanos são pisados. Eis uma epopeia de luta desta mãe coragem que de derrota em derrota não desiste até fim do livro.
O texto é sempre descrito pelos olhos e pensamento de Eilish: as suas memórias dos tempos de normalidade, os seus medos do presente, os acontecimento aterradores que acontecem, a necessidade de proteger cada um dos seus familiares, a constatação que o poder nada respeita e a violência psíquica e física que evolui desde a retaliação política até ao aproveitamento do ser humano sobre o outro fragilizado.
Numa escrita muito própria e intimista, existem momentos onde se deduz atos de violência e tortura extrema e, sobretudo, chocante ou revoltante, eis um alerta sobre os riscos que o mundo democrático atual está a correr com os extremismos em crescimento no seu seio... até ao dia em que a canção do profeta nos bata à porta.
Gostei do romance, tem uma grande qualidade de escrita, mas confesso que sofri ao ler, doeu, mais ainda olhando para o desenrolar dos acontecimentos em curso no mundo democrático atual e perceber o que nos pode acontecer. Muito bom.

sábado, 14 de dezembro de 2024

"Desfile" de Rachel Cusk

 

"Desfile" foi a minha estreia na escritora Canadiana Rachel Cusk, autora que me despertou curiosidade por indicação de um amigo das lides literárias.

Este é um romance cuja narrativa não é uma história linear, mas antes uma passarela por onde desfilam várias personagens, que se identificam como G e são artistas: pintores, escultores, realizadores de cinema ou escritores; falam de si na terceira pessoa, tecem reflexões sobre a sua obra, a busca da verdade através da representação da sua arte, tentam mostrar ou esconder a sua identidade nas suas produções e mostram a evolução destas num esforço de exporem a realidade ou a verdade, um narrador ou mais que falam desses mesmos artistas e ainda várias outras personagens que expõem a sua reflexões sobre a arte, a identidade, as suas relações com os que lhe são próximos, filhos, pais ou companheiros e artistas e alguns G.

Assim, temos G visto pelos olhos da mulher, mais admirado pela crítica do que por ela, que, num momento, passa a pintar quadros de pernas para o ar e onde ela entra na pintura; temos a escultora de malha G, onde numa exposição póstuma da sua obra se dá um suicídio, o que leva a curadora e um círculo de convidados para falar no evento a se encontrarem e a conversarem de arte e da sua vida numa mesa de restaurante; temos a pintora G que pinta com base em fotografia e em tensão permanente com os pais, o marido e filha; temos um escritor que passa a realizador que quer esconder a sua identidade e mostrá-la atrás do seu pseudónimo G para não perturbar os pais ao contrário do seu irmão, responsabilizado pela doença da mãe; temos ainda um casal que passa férias numa ilha e reflete sobre a vida, além de outros Gês e personagens.

No fim está tecida a teia de reflexões, ora em tom ficcional, ora ensaístico, que levanta questões desde o reconhecimento da mulher como artista, o papel do corpo na arte ou na representação, a identidade escondida ou exposta, a busca da verdade na arte e, inclusive, da possibilidade de não ser considerada útil apesar do trabalho que deu a produzir e tudo o que está subjacente a ela ou de ser importante e ainda pensamentos das relações humanas, a vida e a morte.

Numa série de pequenos episódios com uma escrita única a teia fica montada numa obra de arte muito sui generis.

domingo, 8 de dezembro de 2024

"O Protocolo Caos" de José Rodrigues dos Santos

Citações

"Se muita gente disser ao mesmo tempo o inaceitável, o inaceitável tornar-se-á aceitável."

"As redes sociais apelam à raiva, à indignação, à fúria justiceira."... "Os algoritmos não estão preocupados com a verdade nem sequer sabem o que é isso. São amorais."... "todo o sistema está montado para privilegiar a emoção e a falsidade."

Apesar dos romances do jornalista José Rodrigues dos Santos tenderem a ser atualmente dos mais vendidos em Portugal, do seu sucesso internacional e de muitas vezes ele ser designado como o "Dan Brown português", apenas dele li os dois volumes da biografia romanceada de Calouste Gulbenkian, e mesmo tendo em conta a pressão negativa contra ele de certa franja política, logo que em pré-lançamento percebi o tema que ia ser focado nesta ficção de espionagem e suspense: o modo como Putin está a implementar a sua estratégia de destruir o ocidente democrático e de dominar a Europa, baseado em factos verdadeiros, quis ler "O Protocolo CAOS".

A obra possui três histórias diferentes que se alternam ao longo do livro: 1. os acontecimentos que levaram ao recrutamento do tenente Chernyshev para os serviços secretos russos (FSB), a sua aprendizagem para interferir no Brexit, na eleição de Trump e na recusa da sua derrota; 2. a situação angustiosa da vida de Roderick na Louisiana, a opressão imposta pela cultura woke, a sua apresentação às redes sociais e o modo como é por estas manipulado pelo FSB para se tornar num incondicional apoiante de Trump; e 3. como o "detetive" Tomás Noronha se torna alvo de chantagem russa e tem de trabalhar para o FSB, enquanto tenta reconciliar-se com a esposa ao colaborar com a Amnistia Internacional em casos desastrosos gerados pelas redes sociais: a propagação do vírus Zika no Brasil e a perseguição da etnia Roinga no Myanmar. No fim, as três narrativas unem-se e evidenciam como a humanidade está a ser afetada pelas redes sociais e como estas estão a ser usadas pelo regime russo para dominar o mundo democrático.

O texto da narrativa é escorreito, mas literariamente pobre, sem grande recursos estilísticos e os que usa são banais. Cada capítulo termina deixando o leitor surpreendido e em suspense, uma técnica que o prende, mas a obra vale sobretudo pela denúncia clara da manipulação personalizada das pessoas que usam as redes sociais e mostrar como Putin interferiu no Brexit e fez ascender Trump ou por responsabilizar redes sociais do genocídio dos roíngas e na campanha anti vacinas no Brasil. Várias personagens do romance são marionetas manipuladas, executantes acríticas de uma estratégia de que são alheias ou vítimas inocentes.

Perto do final do romance, este torna-se quase uma exposição jornalística de vários aspetos preocupantes em torno de Trump a que se segue uma Nota Final explicativa dos factos reais que suportam as histórias e da forma como é construída a narrativa de Putin e a sua estratégia de destruir a Europa e fazer colapsar os Estados Unidos com os valores do ocidente: a democracia, a liberdade e com a ferramenta das redes sociais.

Em determinados momentos sente-se a influência de Timothy Snyder, que é citado na bibliografia final, e para quem leu este livro, percebe como esta obra vai no mesmo sentido. Todavia, Rodrigues dos Santos, talvez por ser ideologicamente liberal, e ao contrário da caricatura à cultura woke, para a ascensão de Trump e vitória do Brexit nunca culpa a ganância sem amarras dos mais ricos no capitalismo, nem os efeitos da deslocalização de unidades fabris pela globalização que gerou estagnação e pobreza da classe média das zonas industriais do século XX nos países economicamente desenvolvidos. 

Em resumo: apesar de não considerar que se esteja perante uma obra de ficção com grande qualidade literária e de não cobrir todos os aspetos que estão a instabilizar o ocidente, vale a pena ler este romance pelo aspetos que denuncia, isto enquanto ainda é possível viver em democracia e liberdade no ocidente.