impressões de um geólogo amante de livros e música erudita que vive numa ilha vulcânica bela e cosmopolita
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terça-feira, 26 de dezembro de 2023
"Trilogia" de Jon Fosse
quinta-feira, 21 de dezembro de 2023
"Águas Passadas" de João Tordo
Citações
"A única coisa necessária para que o mal prospere é que os homens bons não façam nada."
"As pessoas que gostam de ler não são felizes nas suas vidas."
Um corpo de uma jovem arroja numa praia com sinais de violência post-mortem semelhantes ao de um crime cometido 30 anos antes, um segundo cadáver violentado como outro caso na mesma época passada, uma sub-comissária atada pelas dificuldades na esquadra e problemas da vida pessoal, um eremita que testemunhou os casos arquivados e o arrojamento que decide apoiar a mulher-polícia e um grupo de luso-ingleses influentes e poderosos que surgem por detrás de tudo isto. Ficam reunidas as condições para uma investigação inicialmente a ritmo lento e com grande tensão psicológica num período de permanentes chuvas sobre a região de Lisboa, um caso que evolui para um final violento e acelerado onde se desvenda o presente e aquilo que politicamente fora abafado no passado.
Este é o terceiro romance de João Tordo que leio e mostrou-se-me um escritor eclético que vai de dramas com análise social a obras policiais, mas onde sempre estão presentes tensões psicológicas nos protagonistas que se articulam com a trama. Em "Águas Passadas" tal como em "Ensina-me a voar sobre os telhados" o peso dos mortos sobre os vivos existe, bem como a ajuda coletiva para ultrapassar as questões individuais.
Este policial, lembra-me o estilo dos policiais de Leonardo Padura, a violência dos policiais nórdicos e ainda mostra o frequente descontentamento dos portugueses com as suas instituições e sociedade, numa simbiose e num tom característico do escritor.
Gostei, é de fácil leitura e com pontes para obras-primas da literatura mundial, como este romance de Tolstoi,
quinta-feira, 30 de novembro de 2023
"Ravelstein" de Saul Bellow
Voltei ao escritor laureado com prémio Nobel em 1976, nascido no Canadá e naturalizado Norte Americano Saul Bellow com a leitura do seu último romance "Ravelstein".
Chick apresenta-nos com um enorme brilhantismo o seu grande amigo Ravelstein: uum grande e influente professor universitário de filosofia política, um acutilante crítico dos comportamentos sociais e das pessoas alicerçado nos seu saber dos filósofos e da história clássica e dos judeus e acede aos principais líderes ocidentais. Extravagante, satírico e homossexual, adora roupas de luxo, gastronomia requintada e música barroca e Paris. É ainda o mentor de alunos que se fascinam por ele e. quando reconhecidas suas capacidades por este, tenta orientar as suas vidas. Quase sempre viveu com dificuldades em sustentar os seus caprichos, mas, de uma sugestão de Chick, escreve um livro sobre si e suas ideias que o torna imensamente rico, o que lhe permite satisfazer os seus gostos. Em Paris encomenda a Chick a sua biografia, sendo-lhe depois diagnosticada SIDA. Decorre então um período do desenvolvimento da doença, mas não de abatimento da sua personalidade, é acompanhado de perto por Chick e a última mulher deste, descrevendo a sua luta, seguindo-se os efeitos da sua ausência nos amigos dele, até que Chick adoece com uma toxina e reconhece a importância dos que lutam pelos outros e do seu dever de eternizar o seu amigo.
Escrito com uma ironia requintada e cheio de referências cultas que mostram a força de uma grande amizade sem complexos por quem é diferente. É um elogio a mentes geniais e às pessoas que dão tudo para outros sobreviverem nesta vida. Denuncia, uma marca deste autor, os complexos dos judeus norte-americanos na integração social através de reflexões filosóficas e religiosas. Apesar de dois períodos de doença, nunca a narrativa se torna deprimente, pois o bom humor acutilante atravessa todo o livro que me cativou do princípio ao fim. Magnífico e sintético, eis uma obra com pouco mais de 200 páginas que, ao contrário de outras obras onde Bellow se estendeu excessivamente, constrói para mim um romance leve e culto, mas perfeito de um galardoado com o Nobel da literatura.
quinta-feira, 23 de novembro de 2023
"O Mapa de Sal e Estrelas" de Jennifer Joukhadar
Citação
"as histórias acalmam a dor de viver, não de morrer. As pessoas pensam sempre que morrer vai doer. Mas não. É viver que nos magoa."
Estreei-me nesta jovem escritora sírioamericana com o seu primeiro romance "O Mapa de Sal e Estrelas".
Nour é filha de um casal sírio, emigrado em Nova Iorque e desenhadores de mapas, a mãe é cristã e o pai muçulmano, este morreu, criou um vazio nela e a família a retornou a Homs para reconstruir a vida. Aqui, a guerra civil apanha-os num bombardeamento. Mãe, irmãs, Nour e outros decidem fugir até Ceuta, um trajeto comum a tantos refugiados atuais das guerras no médio-oriente. A obra depois narra as dificuldades e mortes da caminhada pelos olhos da criança. Nour, tem sinestesia (associa cores aos sons e cheiros), em paralelo recorda a história que seu pai lhe contava sobre Rawiya: uma menina que fugira de Ceuta há 800 anos atrás para encontrar com Idrisi, o cartógrafo (personagem real) que depois foi encarregado de elaborar um mapa para o rei da Sicília dos territórios entre a Síria e o Magrebe. É a época dos cruzados e do expoente máximo da cultura e riqueza árabe, outra narrativa com as fantasias da idade média.
As agruras pintam o mapa com o sal das lágrimas e as estrelas desenham a esperança do caminho, realidades que se entrecruzam nos mapas de duas épocas tão diferentes dos mesmos territórios.
A autora, usa a sinestesia de Nour, para desta situação neurológica criar metáforas e dar cores e cheiros a situações e acontecimentos e fazer uma denúncia dos problemas dos refugiados sírios em torno da Europa. Não há acusações, nem toma partido por fações. Apenas temos vítimas humanas, que correm riscos de vida, morrem e sofrem e memórias de outros tempos fantasiosos que, sem serem pacíficos, contrastam na riqueza de então com a destruição atual.
Um livro muito fácil de ler numa narrativa comovente que mistura factos atuais, personagens históricas e fantasia para mostrar ao mundo um problema humano: os refugiados e vitimas inocentes das guerras, algo que presentemente cerca a Europa.
domingo, 5 de novembro de 2023
"O Hóspede de Job" de José Cardoso Pires
Acabei de ler "O Hóspede de Job" do escritor português José Cardoso Pires que, junto com José Saramago e António Lobo Antunes, fazem parte do trio que me cativou para a literatura lusitana da segunda metade do século XX.
Este pequeno romance, talvez mais uma novela, tem uma trama difícil de qualificar e de descrever, corresponde a um cruzamento de várias narrativas simultâneas passadas no Alentejo em plena ditadura do Estado Novo. Através destas apercebemo-nos do uso das forças policiais como instrumentos ao serviço da política e a desconfiança das populações. Vemos um povo rural que, maioritariamente, vive refém do trabalho precário em regime de jorna, pago como uma esmola e em que as famílias poderosas se sentem protegidas pelo sistema. Uma época onde as migrações internas em que autóctones e migrantes concorrem entre si em proveito das famílias bem estabelecidas. É um período em que quem proteste por melhores condições laborais pode ser considerado subversivo e em que Portugal entrou em guerra sem a população perceber porquê, nem sequer tem noção do que é um inimigo, enquanto num quartel as forças armadas recebem formação de militares por norteamericanos que olham para a miséria deste país, ora com pena, ora como uma terra de férias, e onde os danos colaterais desta decisão caem sobre pessoas indefesas e a desconfiança e o protesto são manifestados de modo escondido.
Um livro com uma escrita ao mesmo tempo poética, dura e bela, onde o autor faz um quadro do Portugal rural da década de 1960, com um povo indefeso, desconfiado, entre o acomodado à sua miséria e a luta por uma situação melhor, um confronto onde ser vítima e sobrevivente faz parte do quotidiano. Uma obra que foge ao neorrealismo costumeiro da literatura portuguesa de então e é uma homenagem ao irmão do escritor que morrera em serviço militar. Uma obra ainda sem a grandeza da maioridade literária José Cardoso Pires mas onde todo o seu potencial e originalidade já se mostra.
sábado, 28 de outubro de 2023
"Cem anos de solidão" de Gabriel Garcia Marquez
Citação
"o segredo de uma boa velhice não é mais do que um pacto honrado com a solidão."
Apesar de ser um grande leitor, não sou dado a releituras, que me lembro "Cem Anos de Solidão", do colombiano e prémio Nobel da literatura Gabriel García Marquez, é o terceiro romance que releio, neste caso passados 35 anos de quando o li pela primeira vez e é talvez a obra emblemática deste escritor.
José Arcadio Buendía e sua esposa Úrsula com mais um conjunto de homens e mulheres partem da sua terra em busca do mar e perdem-se na floresta amazónica e criam a sua aldeia Macondo isolada do mundo e apenas visitada por artistas de circo que comunicam os seus saberes mágicos que José Arcadio se deixa aliciar e no qual investe os parcos rendimentos do casal. Começa então a história desta família marcada pela pobreza, magia, solidão e guerra que se estende por 7 gerações de amores, traições, incestos, loucuras, guerras, vitórias, derrotas, sucessos e superstições num mundo em que ocorrem invenções tecnológicas e revoluções políticas e económicas cujos ecos chegam e perturbam progressivamente Macondo e as relações humanas desta terra perdida na floresta entre a realidade, a magia e os espíritos dos mortos.
Numa narrativa que criou o estilo do realismo mágico, o autor encadeia um conjunto de acontecimentos e loucuras a ritmo alucinante onde se conta a vida das várias gerações de Buendías, marcados pela personalidade mais terrena e alquímica dos Arcádios ou mais guerreira e social dos Aurelianos, sempre sujeita à força das mulheres e amantes que a integram ou que com ele se cruzam. Assim, de uma forma indireta, se denunciam as injustiças sociais da América Latina, se fala das revoluções políticas de que o continente foi alvo e de cujos frutos nunca responderam às esperanças revolucionárias e onde a pobreza e superstição apenas permitem uma vida de um povo marcada pela solidão e superstição.
Um romance que é um clássico e uma obra incomparável pela sua originalidade e força, onde o leitor se perde entre gerações com nomes iguais, entre a realidade e a magia, entre a esperança e a desilusão e entre a busca do outro e a solidão. Uma obra que deve ser lida por todos os que amam a literatura ficcionada como arte que combina a narrativa, a criatividade e explora os limites da escrita, enquanto monta um retrato da realidade sem o fotografar. Um excelente livro
sábado, 14 de outubro de 2023
"Os comedores de pérolas" de João Aguiar
Citação
"Ou andamos todos a puxar uma nora sem dono ou estamos todos na mão de Deus."
domingo, 8 de outubro de 2023
"Quarteto de Havana II - Paisagem de Outono"
Terminei o quarto e último romance policial do "Quarteto de Havana", intitulado "Paisagem de Outono" e escrito pelo cubano Leonardo Padura.
O designado "Quarteto de Havana" corresponde a um conjunto de 4 romances independentes, todos decorridos ao longo das 4 estações do ano de 1989 e sempre protagonizados pelo polícia de investigação criminal: o tenente Mario Conde. Este vive a sua carreira profissional de forma frustrada perante a corrupção e injustiça que assiste no seu país, afogando a sua mágoa no vício do álcool, nas memória da sua grande paixão de juventude e no convívio com os seus amigos do ensino pré-universitário e sempre a sonhar no seu desejo de sempre: ser escritor.
No presente romance, que decorre no outono, Mário Conde sabe da demissão do seu superior com quem mantinha uma grande relação de confiança e sabia ser um incorrupto. Por isso, decide abandonar em definitivo a profissão, mas é chamado pelo novo chefe que só aceita a sua demissão na condição de descobrir quem assassinou, castrou a atirou ao mar Miguel Forcade: um fugitivo de Cuba que fora um antigo responsável pela gestão dos bens artísticos da burguesia expropriada pela Revolução, mas que agora visitava o país na sequência de uma autorização para ver o seu pai muito doente.
O Tenente aceita o desafio e em pouco suspeita que a vinda estaria relacionada com o objetivo de tirar de Cuba uma obra de arte valiosa que o enriqueceria no exílio, e a morte talvez uma vingança de despojados no passado ou de alguns dos envolvidos na operação de resgate de peça valiosa, incluindo a mulher dele, uma loura bem mais jovem que desperta o interesse do detetive, tudo isto decorre nas vésperas do aniversário de Mário Conde e sob a ameaça de um furacão se abater sobre Havana.
A obra de Padura costuma rechear-se de denúncias dos problemas sociais e falhanços do sistema político que instalado em Cuba com a revolução e este romance não é exceção. Entre investigações há sempre as referências à pobreza vivida no país, à corrupção que mina a economia e as dificuldades de expressão devido à falta de liberdade que se suavizam pelo álcool, imaginação gastronómica para vencer o racionamento e a sexualidade intensa das personagens cheias de memórias.
Gosto deste escritor quando envereda por relatos históricos como nos seus romances Hereges e O Homem que gostava de cães, neste livro de facto há um momento em que Padura vai às origens da peça que de facto esteve na origem da vinda de Miguel Forcade e desencadeou depois tudo o que Mário Conde, por intuição e investigação deslinda e o leva ao seu sonho. Um policial típico do autor, que é mais do que uma mera obra de investigação criminal e fácil de ler
sexta-feira, 22 de setembro de 2023
"Assim começa o mal" de Javier Marías
"Na realidade, tudo aquilo que se conta, tudo aquilo a que não se assiste, é apenas rumor, por muito que venha envolvido em juramentos de pura verdade."
"... quando se renuncia a saber aquilo que não se pode saber... talvez então assim comece o mal, mas em contrapartida, o pior fica para trás."
" O perdão não aguenta tanto como a vingança."
Regressei ao meu escritor sensação e fetiche dos último ano e meio, nunca um escritor me levou a acompanhar a sua obra tão intensamente como o espanhol Javier Marías, agora chegou a vez de um dos seus romances publicados há quase uma década "Assim começa o mal".
O jovem Juan de Vere é contratado pelo realizador de cinema Eduardo Muriel para seu secretário particular, logo de início descobre o mau relacionamento deste com a mulher Beatriz e entra em contacto com o círculo de amigos do empregador. Muriel incube o seu secretário de descobrir a veracidade de um boato sobre um dos seus amigos mais próximos de quem ouviu ter um passado desonrado relacionado com a atitude do mesmo com mulheres. O jovem não só descobre aproveitamentos relacionados com o seu poder de influência perante o regime ditatorial de Franco, como promiscuidades recentes, enquanto em paralelo verifica uma vida secreta de Beatriz e a infelicidade desta, como ainda desenvolve uma paixão juvenil pela mesma. A investigação leva ao perceber uma teia complexa de relacionamentos humanos com vingança sob o regime político subalternizava as mulheres, mentiras e abusos de poder imorais que logicamente apontam para tragédia e infelicidade.
Como sempre é a escrita o elemento que mais me cativa em Javier Marías, um narrador onde as suas histórias se desenrolam a uma velocidade lentíssima, quase paradas e travadas por uma engrenagem de reflexões sobre comportamento humano, pormenores linguísticos e tratamento de sinónimos que travam o evoluir da narrativa mas criam textos extensos riquíssimos, no caso presente também na denúncia do que foi a vida sob a ditadura e o pacto social para criar uma paz podre cheia de segredos e de reescritas do passado de muitos que permitisse a democracia se instalar até ao início dos anos de 1980 sem a vingança destruir o novo regime.
Gostei do romance, não é o meu favorito do autor, mas também não me desiludiu e como sempre a sua escrita deixou cativado na apreciação do texto, mas não é uma obra fácil e de leitura rápida.
terça-feira, 8 de agosto de 2023
As sete mortes de Evelyn Hardcastle de Stuart Turton
Acabei de ler "As sete mortes de Evelyn Hardcastle" de Stuart Turton" do escritor inglês Stuart Turton, sabia tratar-se de uma obra enigmática e de investigação criminal, mas pouco mais sabia do romance.
Alguém desmemoriado perdido numa floresta segue uma ordem de ir para leste com uma bússola, recorda que assistiu ao assassinato de Ana, nada mais, na sua rota chega a uma casa senhorial, isolada, mal conservava e é reconhecido e acolhido como um dos convidados de uma festa privada. Nesta, ao final da noite ocorre numa encenação de suicídio o assassinato da filha dos anfitriões e dá-se a situação de o protagonista estar obrigado a deslindar o caso para poder sair da mansão, mas a realidade está muito além de uma simples investigação e Aiden Bishop não é um simples indivíduo único, pois o dia volta a repetir-se com o mesmo desfecho e festa até ser desvendado o criminoso, havendo quem faça tudo para impedir o seu sucesso, incluindo a matando os eus de Bishop e procurar matar Ana.
Aquilo que inicialmente parecia uma simples trama linear de crime e investigação, veio a revelar-se num romance gótico com crime, castigo num mundo surrealista. Sobre o ponto de vista de escrita, o texto está cheio de frases e ideias para recordar e fazem pensar... mas as repetições dos acontecimentos com mudanças subtis à semelhança de uma obra uma musical com tema e variações, tecem uma malha que embora mantenha o suspense, vai-nos surpreendendo. Gosto de obras góticas no domínio do terror, já de investigação criminal com surrealismo ou fantástico deixou-me incomodado... mas para quem gosta do estilo de narrativa é um excelente puzzle eo texto é riquíssimo para muitos sublinhados.
domingo, 18 de junho de 2023
"Estorvo" de Chico Buarque
Li o romance de estreia "Estorvo" do cantor e escritor brasileiro Chico Buarque e galarduado com o prémio Camões. Tinha esta obra integrada numa coleção que comprei e associada a uma assinatura de um jornal.
Na transição entre o sonho e a realidade de um acordar com o toque da campainha, o protagonista vigia quem pretende ir ao seu apartamento, num vislumbre reconhece mas não lhe abre a porta. Regressa então à cama e entramos numa espécie de delírio entre memórias e uma peregrinação de uns dias onde todos os momentos narrados sucessivos corresponde a uma mistura da realidade presente e recordações de factos, desde ao visita à ex-mulher, ao roubo da irmã numa casa de sonho, passando por mala de estupefacientes e visitas a uma casa de infância ocupada por gente muito estranha.
Num texto poético que parece um delírio, é de facto uma obra estranha, mas que depois de começar a ler, li compulsivamente embora mais me parecer o evoluir de um sonho cheio de factos do que uma narrativa linear. Gostei embora por vezes me sentisse perdido num surrealismo cujo o texto me deu prazer de ler.
sábado, 10 de junho de 2023
"Entre dois Palácios" de Naguib Mahfouz
Neste momento estou numa fase de forte redução do tempo disponibilizado à leitura, pelo que, levei dois meses e meio a ler as 609 páginas do romance "Entre os Dois Palácios", o primeiro da denominada "Trilogia do Cairo", escrito pelo autor egípcio, laureado com o Nobel da literatura, Naguib Mahfouz.
Este romance conta a vida dos membros da família Ahmad Abdel Gawwad, composta pela subserviente segunda mulher e os cinco filhos dele durante o período da I Grande Guerra Mundial e vai até à revolução de reivindicação da independência do Egito. Um período de transição em que o país está ocupado pelo ingleses e os Turcos do império Otomano já deixaram o território e a nação muçulmana anseia por se libertar da tutela estrangeira cristã.
O líder da família é um importante comerciante influente e respeitado no seu bairro, mas tem duas personalidades: a primeira gere a família com um feroz conservadorismo e obediência à fé muçulmana, retém em casa a mulher e filhas sem qualquer contacto social e impõe aos filhos uma obediência cega às suas diretrizes e apesar de dois deles serem maiores tal não impede o uso da violência física e psicológica. A segunda personalidade é a de um dissoluto com mulheres, apaixonado pela música e poesia e viciado em álcool.
Apesar do terror imposto por sayyed Gawwad, os elementos da família tendem a desobediências e a esconder esses factos, desde o primogénito filho de um primeiro casamento que segue as pisadas do pai na sua vida fora de casa, a uma filha demasiado agressiva na linguagem e a outra de excecional beleza que se quer mostrar, passando pelo idealista Fahmi com ideais políticos de participação na revolução e ainda criança a Kamal que inocentemente desrespeita as regras e se torna mascote de ingleses que ocupam a rua. Exceção para a subserviente mulher, que apenas por um deslize aliciado pela família será alvo de um castigo desproporcionado.
O romance, ao retratar a intimidade desta família, inclusive o pensamento das suas personagens, mostra a cultura egípcia, a mentalidade tradicional das suas gentes, o peso da religião islâmica nas relações humanas e na formação da personalidade. Não faz julgamentos sobre o certo ou o errado de forma evidente, mas ao salientar a hipocrisia, põe a nu uma sociedade patriarcal onde a mulher não é livre, nem tem voz, mas também onde esta inclusive não só aceita essa secundarização, como até se choca com outras que têm maiores liberdades.
A situação também está evidente na tradição dos casamentos negociados pelos mais velhos e não por escolha pessoal dos envolvidos, da imposição do patriarca aos filhos, além das formas como certos personagens contornam a imposição religiosa e moral mantendo as aparências social, sem omitir a exposição do caminhada para a independência deste povo dominado por estrangeiros. O romance mais do que denunciar, serve para reflexão do leitor e compreensão das diferenças culturais entre ocidente e o médio oriente islâmico.
Com numerosas referência ao Corão está-se perante uma narrativa que junta uma trama e informação histórica, com textos, por vezes, com parágrafo muito extensos intercalados com diálogos, onde há um uso de metáforas bem distintas das que podem brotar na cultura ocidental. Um excelente romance que desperta interesse para a continuidade da leitura dos volumes seguintes para completar a saga familiar e compreender a história do Egito na primeira metade do século XX.
domingo, 23 de abril de 2023
23 de abril - Dia Mundial do Livro
Todos anos, é neste dia comemorativo que apresento os livros que considerei as minhas maiores leituras ao longo de um ano desde a comemoração anterior. Fruto de alterações na minha vida pessoal, reduzi drasticamente o tempo e mesmo nalguns momentos a disposição para leituras, mesmo assim, aqui vão duas obras que me marcaram.
Livro mais marcante
O teu rosto amanhã de Javier Marías
Três volumes para uma extensa, densa e original obra-prima com uma escrita muito rica, nem sempre fácil para todos, cheia de apreciações linguísticas e sinónimos que compara a língua e cultura de Cervantes com a de Shakespeare, mas pela proximidade da primeira à de Camões, pouco perde na sua tradução para o português. Uma obra que mistura ficção e personagens reais que entra pelo mundo dos serviços secretos e seus potenciais abusos e questões morais entre as limitações legais e a segurança pública. Um misto de espionagem e tratado filosófico sobre ética, psicologia e moral que me colocou fã e leitor compulsivo do autor.
Os três volumes sucessivamente tratados neste blogue aqui, aqui e aqui.
Literatura em Português
Pela sua originalidade e facilidade de leitura, ternura e juntar o mundo luso atual e a forma de pensar nipónica, gostei e foi uma excelente surpresa, por isso classifico-o como o romance escrito em português originalmente que mais gostei.
Falei dele aqui.
Para já, votos de boas leituras e descobertas no mundo fascinante dos livros nas suas mais diversas formas: ficção, poesia, divulgação científica, ensaio, fotografia, banda-desenhada ou mesmo literatura infantil. Leiam!
domingo, 26 de março de 2023
"Testemunha muda" de Agatha Christie
Voltei aos romances policiais da mestre inglesa Agatha Christie, agora com um investigação de Hercule Poirot com "Testemunha Muda".
Durante a estadia em sua casa dos sobrinhos, a idosa Emily Arundell sofre um acidente que é atribuído a um descuido com um brinquedo do seu cão, mas memória desta permite desconfiar de um caso premeditado vindo dos seus hóspedes ávidos da sua herança. Semanas depois ela morre naturalmente, mas deixou todos os seus bens à sua dama de companhia, só que, entretanto, alguém expeliu para Hercule Poirot uma carta esquecida da falecida para investigar o acidente. Este entra em ação e está convencido que, apesar das aparências, Emily foi assassinada. Por qual sobrinhos e familiares ou a empregada que de repente se tornou numa rica herdeira. O nosso detetive, com as suas células cinzentas, estuda a psicologia dos envolvidos e dos seus testemunhos para chegar à verdade.
Numa escrita simples, sem grandes rasgos artísticos, eis mais um caso típico ao estilo desta autora, narrado pelo ajudante Hasting que nos mantém entretidos com a sua imaginação ao tentar perceber o que de facto aconteceu ao acompanhar o seu mestre, mas onde só Poirot consegue ligar todas as pontas. Gostei, fácil de ler e muito acessível.
quinta-feira, 9 de março de 2023
"O Primo Basílio" de Eça de Queirós
Acabei de ler "O Primo Basílio" do grande escritor português do século XIX Eça de Queirós, de quem tenho toda a obra, de cuja edição tirei a foto da capa. Ao nível de ficção penso que me falta apenas ler o romance "A tragédia da rua das Flores", além de diversos contos dele.
Jorge, engenheiro de minas, casou-se há poucos anos com Luísa, vivem felizes e calmamente numa casa num bairro de Lisboa onde recebem vários amigos dele, à exceção da principal amiga dela, uma mulher divertida que tem uma vida de infidelidades conhecida. Num sarau falam de política, de cultura e um dramaturgo discute o final da sua peça sobre um adultério feminino e o papel do marido ao descobrir a traição. Pelo jornal Luísa sabe que o seu primo Basílio, com quem namorara antes, visitava a cidade e enriquecera no Brasil e Jorge tem de ir para o Alentejo em trabalho. O reencontro dos primos desperta a antiga paixão, estão criadas as condições para uma relação alvo dos olhares mexeriqueiros da vizinhança, a descoberta da traição pela sua criada torna-a alvo de chantagem e as tensões e incidentes levam à interrupção da relação e a uma vida infernal. Luísa, é auxiliada pelos amigos para uma solução condigna na volta de Jorge.
Um texto realista, cheio de pormenores descritivos do vestuário, mobiliário, ruas da capital, das características das personagens, onde também se faz a denúncia sarcástica dos defeitos da sociedade lisboeta no final do século XIX. Uma época onde os constrangimentos da mulher num meio machista são postos em cima da mesa e o retrato da vida social da capital, cheia de valores morais públicos e vícios privados que convivem com a hipocrisia e o mexerico que tecem um drama que se vai tornando cada vez mais intenso.
Um romance típico do realismo queirosiano que coloca a nu os defeitos da sociedade portuguesa, mesmo na sempre provinciana capital. Pode ser interpretado como uma lição de moral ou uma denúncia da dureza do machismo face ao papel atribuído à mulher. Fácil de ler num tratamento genial da língua portuguesa.
sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023
"Tomás Nevinson" de Javier Marías
Regressei ao escritor que descobri e me cativou intensamente no ano passado: o espanhol Javier Marías. Agora li o seu último romance escrito antes do seu recente falecimento: "Tomás Nevinson". O título é o nome de uma personagem importante da anterior: Berta Isla, e este o da principal narradora desta obra, de quem Tomás era o marido, embora houvesse partes significativas também contadas por este e apesar da maioria da sua vida ao longo da duração do romance nos ser intencionalmente escondida. Confesso, que foi a curiosidade do ocultado que me levou adquirir este último para descobrir o que não fora relatado, só que a obra é uma sequela, continuando omissos os casos em que este narrador antes se envolvera.
Após tomar a decisão de abandonar a carreira nos serviços secretos ingleses sob as ordens de Tupra no fim do livro anterior, Tomás regressou ao trabalho oficial na embaixada e aproximou-se da mulher, sente agora os prazeres da vida comum, mas ficou-lhe o saudosismo dos tempos de ação à margem da lei e do conhecimento público e reflete sobre os males maiores que evitou com os seus atos ilegais. Mas Tupra volta a aliciá-lo para descobrir uma terrorista corresponsável de um atentando sanguinário (evento real) que se suspeita ser uma de três mulheres de passado desconhecido que vivem numa cidade nordeste de Espanha. Cede e, disfarçado de professor de inglês, aproxima-se destas, mas as dúvidas são muitas sobre qual delas é responsável de tantas mortes e as questões morais sobre a oportunidade de eliminar ou não alguém errado antes que esta possa matar de novo levantam-se. Houve quem teve a hipótese de disparar contra Hitler antes do mal que fez, será ético agir erradamente por precaução?
Este romance continua a misturar factos reais e ficcionais, bem como a levantar questões morais e éticas dos atos à margem da lei para evitar males maiores, e ainda a manter uma exposição de particularidades linguísticas que distinguem o inglês do espanhol para qualificar situações, pensamentos e comportamentos numa escrita sem pressa e cheia de sinónimos e adjetivos que criam extensos parágrafos onde se comparam expressões para referir os aspetos em discussão e, nisto, é um Javier Marías típico. Embora haja referências e menções a momentos retrospetivos relatados noutros romances do autor e repetição de personagens que já haviam surgido em O teu rosto Amanhã publicado décadas antes, esta obra pareceu-me menos perturbadora e com um desenrolar temporal mais linear e fácil de seguir. Gostei muito, mas tirando a surpresa de não descobrir as partes que buscava, não me provocou nenhum murro no estômago como outros que li dele, mas continuo fã e interessado em descobrir mais da sua obra.
sexta-feira, 20 de janeiro de 2023
"Pastoral Americana" de Philip Roth
"Uma vez iniciado o inexplicável, o tormento da auto-análise nunca mais acaba."
Há bons livros cuja leitura nos faz sofrer, a que resistimos em entrar neles e "Pastoral Americana" de Philip Roth, que com esta obra ganhou um prémio Pulitzer, é um romance que em mim teve esse efeito, aliás, este escritor tem-me provocado luta, se "O Complexo de Portnoy" não consegui concluir a leitura, reconciliei-me com ele através de "A Mancha", agora valeu a pena, mas foi difícil.
Na escola, Seymour Levov, filho de um judeu luveiro tradicionalista, é um jovem alto, louro e um herói do desporto escolar, é um exemplo de sucesso e conhecido por "o sueco". Zuckerman era então um aluno com menos idade, amigo do irmão mais novo dele e um fã, ao crescer torna-se num escritor famoso (alter ego?) e perto dos seus 60 anos encontra casualmente o sueco e este depois agenda um jantar para falar da importância e força do pai, só que foi um fiasco, só fala do orgulho que tem nos filhos do segundo casamento. Mais tarde, num jantar de antigos-alunos, quase todos com achaques e a lembrar os seus males e desilusões (muita da dificuldade de leitura ronda este evento), o narrador reencontra o irmão do sueco, veio ao funeral deste e descobre quanto foi frágil e infeliz foi a vida de Seymour que se sujeitara a agradar ao pai e ao mundo à sua volta, querendo ser um exemplo do sonho americano e enquanto o mundo se revoltava com a guerra do Vietname e mudava, ele amarrava-se a ideias ultrapassadas sem quebrar as barreiras que os preconceitos sociais lhe impunha, até ao choque que a sua filha lhe deu com o seu temperamento de adolescente rebelde e quando descobre quão falsa era a sociedade americana que o cercava, desilusão que é um apelo à superação que o narrador transforma em livro das desventuras do seu ex-herói destroçado por aquela América cheia de vícios, contradições e preconceitos e assim monta esta pastoral americana que mais não é que um retrato duro da história deste país em mais de meio século XX.
O texto cruza memórias do passado das personagens, relatos do antigamente da geração mais idosa e eventos e reflexões da década de 1990 face à história, montando uma análise crítica da sociedade e fazendo uma psicanálise dos anseios e desilusões das personagens. Assim, Roth monta um puzzle e faz um retrato de um derrotado e das forças americanas em presença.
terça-feira, 3 de janeiro de 2023
"Travessuras da Menina Má" de Mario Vargas Llosa
"fundava a sua teoria da inevitável desintegração da humanidade devido à gangrena burocrática"
Após vários anos, voltei ao laureado com o Nobel da literatura Mario Vargas Llosa, agora com o romance "Travessuras da Menina Má". O adolescente Ricardo tem o sonho de viver em Paris e apaixona-se no seu colégio em Lima, Peru, por uma recém-chegada que se diz chilena e o aceita de forma fugidia, mas descobre-se que a moça bonita é uma menina má, envolta em mentiras com o objetivo de parecer alguém de classe alta e ser alvo de atenções e desmascarada desaparece. Muitos anos mais tarde, Ricardo torna-se tradutor da UNESCO em Paris, faz um amigo peruano que recruta compatriotas para formação revolucionária em Cuba, entre estes surge a chileninha. Ressuscita a paixão que a menina má alimenta do forma fugidia, vai para Havana e torna-se amante de uma chefia guerrilheira, eis a a vocação da mulher: buscar alguém que lhe dê um estatuto social para ter vida de rica. Inventa passados falsos, mas todas as suas conquistas acabam mal e tem sempre à espera Ricardo, o seu menino bom, que a ama e a acolhe nos interregnos de nova fuga. Uma sucessão de casamentos e amantes em capítulos, décadas, países e cidades diferentes que construirão as memórias da vida de Ricardo que por amor nunca singrou verdadeiramente na sua vida.
A obra, bem escrita e com uma história bem narrada, origina uma trama ao estilo de novela com um amor difícil do protagonista vítima da menina má. O romance vale, sobretudo, porque cada capítulo faz um enquadramento histórico, geográfico social e cultural, assim assistimos sucessivamente à vida dos adolescentes num bairro de classe média alta em Lima na década de 1950, depois a expansão dos ideais da revolução cubana nos anos seguintes na América Latina vistos a partir de uma Paris, que é então o epicentro da cultura mundial com escritores e filósofos como Camus e Sartre, a admiração internacional da canção francesa e do cinema de autor como Truffaut. Depois, tudo muda para Londres entre a década de 60 e 70: o movimento hippie, a minissaia, os Beattles entre outros agentes da revolução cultural de então, uma das páginas que mais gostei do livro. Mas as aventuras da menina má em seguida saltam para uma Tóquio hiper-higienizada e de sentimentos escondidos mas capaz de realidades extremas que chocam. Para se avançar para tempos mais próximos onde é menos evidente a diferença dos costumes face ao presente, um centrado na esperança e desilusão da evolução política do Peru, outro em Paris e o último que mostra a abertura à cultura de Madrid após a ditadura, momento em que a história tem um fim.
Um livro fácil de ler, por vezes cansa a subserviência por amor do narrador à menina má, mas que se torna interessantíssimo por mostrar a evolução cultural no hemisfério ocidental e apontar por alguns dos nomes da literatura mais importantes da Rússia, pelo que se torna um magnífico guia nestes assuntos.