Excertos
"Oh, sim, uma pessoa nunca é, o que é" ... "como tão-pouco deixamos de ser inteiramente aquilo que fomos"
"O Estado precisa da traição, da venalidade, da intrujice, do delito, das ilegalidades, da conspiração, dos golpes baixos (em contrapartida, as heroicidades apenas a conta-gotas e de tempos a tempos). ... Porque julgas que se criam cada vez mais delitos novos?"
Acabei de ler o terceiro e último volume de "O teu rosto amanhã" do espanhol Javier Marías, um romance difícil de classificar, é essencialmente uma obra de ficção, mas possui duas personagens importantes que foram pessoas reais, Peter Wheeler e o pai do escritor, além de aspetos da experiência de vida do autor e da sua relação com a Universidade de Oxford, aqui como narrador no papel do seu avatar: Jacques Deza, além de referências a numerosas ocorrências hist´rocas da guerra civil de de Espanha e, um pouco menos, dos serviços secretos ingleses na II Grande Guerra.
Efetivamente, este romance que começa com o alerta do narrador de que ninguém devia falar e contar nada, mas centra-se num grupo anónimo de pessoas, não reconhecido pelos serviços secretos ingleses que tem como tarefa "a «coragem de de ver» e que assumem «a irresponsabilidade de ver», e o contam.", tal como diz Javier Marías no epílogo e, como eu percebi da obra: fica sem remorsos das consequências perniciosas e, até mesmo por vezes catastróficas, para as pessoas por eles observadas e descritas nos seus relatórios ultrassecretos. Pelo meio, vamos acompanhando a relação do protagonista com a sua mulher, de quem está separado, mas que mantêm uma amizade e relação em virtude dos filhos, além de uma incerteza se ao nível da manutenção do amor entre eles.
Assim este romance resulta num extenso desfilar de inconfidências e reflexões sobre como somos num dado momento, como mudamos no tempo, como nos denunciamos no que fomos ou no que podemos vir a ser no futuro através das nossas conversas, interpelações e de como podemos observar nos outros todas essas indiscrições e as potencialidades dos eus de cada um.
Apesar da originalidade do tema, que não é um romance do género de espionagem, nem policial, nem de memórias, nem histórico, nem ensaio, nem romântico, mas que de facto envolve isto tudo, foi a escrita que me fascinou, apesar de com menos sinonímias e adjetivações neste volume, talvez para não exagerar a extensão do texto, a narrativa continua sem pressa em concluir as ideias e os factos que vai lançando vão sendo intercalados por divagações que se afastam do ponto inicial, mas após uma caminhada mais ou menos longa retoma-se o tema com um remate final e completando o assunto muitas linhas ou páginas posteriores após uma viagem com numerosas referências paralelas.
A riqueza lexical, as variações de sintaxe e as comparações das subtilezas linguísticas existentes entre a várias frases em inglês (por norma traduzidas dentro do parágrafo) e as ideias e dizeres em espanhol geram uma beleza intencional e trabalhada ao pormenor do ponto de vista literário e evidenciam estar-se perante um escritor contemporâneo com um valor acima da média, contudo, como já disse, poderá não ser uma leitura fácil para quem não tenha por hábito degustar as frases e as palavras, além da extensão do romance.
Este foi o romance que mais gostei nos últimos tempos, mas não é uma obra fácil para qualquer leitor. É livro para quem degusta a escrita e não tem pressa. Um texto para gente que não desespera ansiosa pela conclusão duma ação rápida e ágil, pois esta espraia-se por reflexões e divagações do narrador, criando uma imagem parada sobre a qual recai uma extensa legenda analítica e psicológica. A introspeção sobre a mente humana, como fomos, somos e podemos vir a ser e a consciência que temos disto e do que assistimos e fizemos ou pensamos vir a fazer é um traço que atravessa toda a exposição narrativa. Para mim uma obra-prima e original, uma peça de literatura de alto gabarito que requer estar preparado para a apreciar.
eu gosto de livros q vou degustando devagar. fiquei muito curiosa por esses. beijos, pedrita
ResponderEliminarPenso que a Pedrita iria gostar... mas requer calma esta leitura
ResponderEliminarsim, eu costumo de vez em qd pegar livros assim pra ler, como foram os do proust, fui degustando aos poucos. voltei a falar de livro no meu blog.
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