Acabei de ler o romance "A Brecha" de João Pedro Porto, um jovem escritor Português e Açoriano, mas este livro não é uma obra de cariz regionalista.
O romance apresenta uma trama cuja forma de narrar é mais complexa do que a própria estória em si. Numa noite escura e a ameaçar tormenta, um Homem ascende das arribas do cabo na sutura dos mares (deduz-se São Vicente), surpreende os deuses do Tempo e do Amor em adultério à da História/Memória, foge e é acolhido num tasco de um casal parricida de onde conseguirá levar companheiros para a sua ventura de encontrar o Apocalipse no sul. Em paralelo, um Homem em tédio num quarto reflete sobre a banalidade do seu tempo quando uma brecha se abre e decide por ela percorrer os caminhos da memória. Assim arrancam aventuras que afinal são a mesma. Por sua vez, os donos da taberna decidem contactar os deuses e tramar o seu abate, permitindo apreciar os efeitos da sua existência ou morte no destino dos Homens.
O romance não só apresenta vários estilos de escrita, como várias formas de narrativa. Predomina, no primeiro caso, a redação floreada numa recriação barroca a lembrar Fernão Mendes Pinto e António Vieira, com um vocabulário muito rebuscado, com termos técnicos, arcaismos e raridades da língua que os dicionários nem sempre registam. O autor optou pela designação grega dos deuses, a que por norma somos mais estranhos e ainda com variantes menos comuns, e contém referências a várias histórias mitológicas que revelam um grande estudo da cultura clássica.
A narrativa ora se desenrola em prosa, sobretudo na vertente das aventuras dos homens, onde surgem mitos da época das descobertas e sebastiânicos, misturados com factos históricos da época do declínio de Portugal; ora se desenvolve em teatro aquando da temática do abate dos deuses; e ainda poesia, soneto ou verso livre, que fazem contrapontos à narrativa ou o resumo da aventura humana no final, uma espécie de epopeia camoniana para os heróis corajosamente vencidos nas suas aventuras.
Esta é uma obra densa de mensagens soltas e pistas de reflexão, cuja repetição de leituras permitem conclusões por vezes distintas, apesar de estar subjacente a ideia central de que para se viver há que arriscar, mesmo que depois se seja derrotado e sujeitos ao remorso, mas quem não se aventura, como Dom Sebastião, dificilmente vive. Paralelamente há a discussão do papel do(s) deus(es) na nossa vida ser mínimo e que podemos bem viver sem ele(s), tendo em consideração a hipótese de ser(em) nossa criação, onde se deduz que o Homem é o dono das suas decisões e responsável por ela sozinho.
Estamos sem dúvida perante um grande livro, mas uma obra difícil. Um desafio para quem gosta de ler, mas aprecia a escrita, discute o conteúdo e a forma da trama e por isso, talvez, inacessível a quem procura romances como meros objetos passatempos para momentos de lazer. "A Brecha" é para muito mais do que isto. É literatura no que esta pertence ao mundo da Arte. Gostei e muito.
nossa, que capa linda. ah, fiquei curiosíssima. adoro livros que me instigam. beijos, pedrita
ResponderEliminarEste permite de facto grandes liberdades de interpretação associada ao fantástico com pés em mitos históricos e pontes para reflexões filosóficas.
ResponderEliminarEu também adorei a capa, mas não me atraiu o tema.
ResponderEliminarEu sou dos que não gostei da capa, geologicamente não é uma brecha em nenhum sentido do termo, mas o conteúdo e a exploração das formas valeu, além de toda a filosofia subjacente... mas não é uma obra fácil.
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