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quinta-feira, 29 de outubro de 2015

"Meursault, contra-investigação" de Kamel Daoud


O livro "Meursault, contra-investigação" que acabei de ler, do argelino Kamel Daoud, prémio Goncourt de 2014 é uma reação à famosa novela "O Estrangeiro" de Camus, prémio Nobel de 1957, que reli antes para melhor a compreender.
Para quem não se lembra, ou não sabe, Meursault é o estrangeiro membro da comunidade colonial em Argel e o assassino do árabe na obra de Camus, de cuja vítima nada soubemos na novela, exceto a existência de uma pretensa irmã, pois nem travou conhecimento com o seu criminoso.
Agora Daoud atribui um nome ao árabe: Moussa, uma comunidade de bairro e uma família, curiosamente não tem uma irmã mas sim um irmão: Haroun, situação explicada nesta ficção, e é este familiar mais novo que narra todo o impacte do crime e o seu contexto sociocultural.
Haroun serve-se da narração de "O Estrangeiro" para não só falar do absurdo na novela de Camus, mas também para contrapor o choque de culturas entre o colono e o povo local, a importância da língua francesa no contexto é interessante, e fala-se até da diferença do ocupante matar um anónimo autóctone e o desprezo votado à vítima em contraponto com os assassinatos na luta pela liberdade da Argélia ou na retaliação do irmão.
Harroun narra a sua vida e desenha situações paralelas e opostas sobre as quais reflete e compara com as de "O Estrangeiro". Em ambos os mundos o narrador está desadaptado dos costumes da sua sociedade, ambos matam, ambos são ateus que confrontam o clero, ambos têm uma relação de incompreensão com a mãe e ambos tiveram uma relação amorosa não comprometida. Todavia Camus conta o presente, Daoud faz uma restrospetiva desde as dificuldades dos argelinos ao tempo de Meursault, passa pela esperança da libertação do País e vai até à desilusão no presente, uma realidade quem também convive com o absurdo.
Um livro interessante, também de pequena dimensão, mas cuja qualidade sai diminuída pela comparação com a genialidade intrínseca a uma das obras maiores do século XX. Não obriga a ler "O Estrangeiro" previamente, mas que ajuda a leitura desta, ajuda, e a de Camus é a obra-prima.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

"O Estrangeiro" de Albert Camus


Reli "O Estrangeiro" de Albert Camus, prémio Nobel de 1957, obra lida na década de 1980 e que me marcara em profundamente. A nova leitura foi para me relembrar do conteúdo desta novela, uma das mais famosas do século XX, dado que a obra que pretendia ler a seguir retomar um outro lado desta ficção.
O Estrangeiro, uma novela que nem chega a 100 páginas, é o relato na primeira pessoa da vida de um francês de Argel a seguir ao falecimento da sua mãe, onde agiu de acordo com as circunstâncias do momento e sem se preocupar que os seus atos pudessem chocar o senso-comum, ações que após um crime circunstancial vão ser usadas contra ele em julgamento e só então se apercebe da distância que existia entre ele e o mundo.
Albert Camus, que também foi filósofo, nesta obra mostra o seu modo de pensar: só o indivíduo entende bem os seus atos; muitos destes são irrefletidos e só coerentes com o seu sentir. Ao ouvir-se o mundo que nos cerca tomamos consciência como se pode viver desenquadrado com a sociedade e ser-se um estrangeiro na sua terra e exposto às interpretações mais díspares sobre o comportamento que se teve na vida diária.
Escrito numa linguagem muito concisa, simples e direta ao que se quer dizer, apesar de tudo profunda, aliciante e bela, Camus mostra um protagonista perdido na sua terra, cuja vida foi a das sensações do momento e como tal pode conduzir a um absurdo para o mundo. Absurdo que Kafka já explorara, mas aqui a personagem vem a perceber a sociedade, mas esta não vai entender o protagonista e este ao consciencializar-se do desencontro percebe o seu existir ou o seu modo de ser. Apesar de um fundo filosófico, é um livro de leitura muito fácil que maravilha a maioria dos seus leitores e daí o seu sucesso e recomendo a todos a sua leitura

sábado, 24 de outubro de 2015

"Volfrâmio" de Aquilino Ribeiro


Acabei de ler "Volfrâmio" de um dos escritores portugueses mais importantes do século XX, Aquilino Ribeiro, um romance que em simultâneo cumpre vários papeis.
Mostrar o que foi a corrida desenfreada da população ao minério de volfrâmio ou tungsténio durante a segunda guerra mundial no interior de Portugal para o exportar para a Inglaterra ou Alemanha para fabrico de armamento, tendo em conta que este elemento químico aumenta a resistência das ligas metálicas e melhora capacidade explosiva do equipamento bélico, situação que gerou uma loucura generalizada semelhante à da febre do ouro. Esta ânsia de encontrar volframite ou de adquirir terrenos potencialmente detentores deste mineral levou à riqueza de muitos, à desgraça e exploração de outros e a uma luta sem ética nas populações indiferente à mortandade que grassava na Europa.
Destruir o mito romântico de que as pessoas rurais são simples, honestas e honradas ao contrário das urbanas, no seio da província lavram todos os vícios que empestam as cidades: a argúcia maldosa, a mentira, a inveja, a mesquinhice, os grupos de malfeitorias, as traições, o domínio dos mais fortes que infernizam a vida de muitos e onde não falta a violência e o crime neste mundo tido por são e pacífico.
Por fim e não menos importante, Aquilino mostra a diversidade lexical do português das Beiras, da designação dos utensílios da economia rural e recorre ao vocabulário em vias de esquecimento, escrevendo um texto não só magnificamente elaborado e cheio de figuras de estilo com raízes nos falares e provérbios populares, como também com uma riqueza de termos e uma elegância linguística que delicia todos os que apreciam a escrita como forma de arte. Todavia nem sempre é fácil apreender o significado de todas as palavras usadas quer pela abundância, quer pela frequência e proximidade em determinados parágrafo.
Assim, por estes três aspetos estamos perante um romance histórico e uma colectânea da riqueza da língua numa história acessível, uma vezes irónica, outras divertida e com momentos densos e amargos do que foram as dificuldades vividas nas nossas aldeias devido à pobreza das pessoas e à luta entre as virtude e defeitos da população portuguesa, sendo que estes também não são poucos.

sábado, 17 de outubro de 2015

"O outro pé da sereia" de Mia Couto



"O Outro Pé da Sereia" de Mia Couto tem duas histórias ao longo do livro, intercaladas por capítulos que se cruzam no espaço mas estão distanciadas em 440 anos. A mais antiga em 1560 romanceia a vinda de Goa para Moçambique para a região do Zambeze do jesuíta Gonçalo da Silveira, personagem história tida como o primeiro mártir da evangelização portuguesa. A mais recente em 2002 numa aldeia da zona do martírio do missionário que se prepara e recebe um casal de afro-norte-americanos negros de uma ONG interessados em descobrir as feridas deixadas pela escravatura para compensar os descendentes de forma de aliviar a consciência de pertencerem a uma sociedade privilegiada mas onde são ainda alvo de preconceitos.
No relato histórico na linha condutora da narração denuncia-se o contrassenso na evangelização se aproveitar para implementar a exploração e escravatura dos africanos, mostrar a coexistência do cristianismo e das crenças animistas que levam a conversões em sentidos contrários de ambos os lados, pondo a nu o conflito de interesses e o choque de culturas.
A estória que decorre no século XXI, parodia os complexos de culpa e de indemnização dos descendentes africanos em estados ricos, como o aproveitamento de populações negras que exploram a situação e criam casos para justificar apoios e, em paralelo, são usadas memórias e uma imagem de Santa de 1560 e outros dados posteriores como meio de denuncia de injustiças históricas enraizadas em Moçambique e onde muitas vezes foram os seus habitantes os exploradores de si mesmo.
O romance tem duas escritas, a do relato histórico, em estilo de crónica romanceada com um português escorreito e a do romance neste século, onde Mia Couto utiliza a sua técnica de criação de palavras e parafrasear provérbios para construir a sua paródia e cultivar subtilezas irónicas que caracterizam o seu estilo. No conjunto é um romance divertido e triste, onde as feridas do colonialismo e da guerra fraticida brotam como pistas para reflexão e conhecimento dos problemas na sociedade moçambicana atual. Gostei.

sábado, 10 de outubro de 2015

"O tempo e o Vento" de Érico Veríssimo

"O Tempo e o Vento" de Érico Veríssimo, além de ser uma importante obra-prima da literatura brasileira, que estranhamente se encontra esgotada em Portugal, é um romance que nos últimos anos procurei ansiosamente adquirir com dois outros motivos: (1) por relatar a história do povoamento do Estado do Rio Grande do Sul que contou com um importantíssimo contributo de emigrantes dos Açores no século XVIII, Região onde vivo e estão todas as minhas raízes; (2) por Porto Alegre ter-se tornado cidade irmã da Horta e esta ter-se depois geminado com aquela capital do mesmo Estado através de uma votação unânime da Assembleia Municipal da Horta, em que eu participei, e não concebo ter contribuído para este ato sem conhecer a cultura daquela metrópole onde Érico Veríssimo é um dos seus expoentes máximos literários.
Assim após intensa pesquisa só consegui encontrar num alfarrabista da feira do livro de Lisboa um livro antigo, com ortografia anterior a 1973, com os dois primeiros volumes reunidos de "O Tempo e o Vento" que constituem a primeira das três partes desta extensa obra e designada por "O Continente".
"O Tempo e o Vento" é um romance em forma de saga que desenvolve a formação da família Cambará através da fusão de sangue índio, açoriano luso-flamengo, paulista e até de um salteador errante que se torna sedentário por amor. O narrar-se estas origens no século XVIII e o posterior evoluir das várias gerações Cambará serve de meio para dar a conhecer ao leitor as lutas entre Portugal, Espanha e oportunismos ingleses, bem como o papel das Missões jesuíticas, que levam à definição das fronteira meridionais do Brasil com o Uruguai e a Argentina e prosseguir pela criação da província do Continente do Rio Grande de São Pedro, as suas guerras internas e fronteiriças, o estabelecimento da sua população com migrações brasileiras e imigrações açorianas, lusitanas, alemães e italianas, passando pela independência do País e indo até ao início da república federal com a instituição do Estado do Rio Grande do Sul já no fim do século XIX com o seu carácter cultural único, com virtudes e defeitos bem evidenciados na obra, que mistura todas as proveniências do seus habitantes, aproveitamentos políticos, influências religiosas e onde as raízes açorianas merecem um destaque no romance, não só com a Cavalhadas típicas da Ribeira Grande em São Miguel, como a dança da chamarrita tão forte no Faial e Pico e a culinária misturada com os produtos locais.
Érico Veríssimo com uma escrita elaborada que mistura linguagem popular com a escorreita, não expõe de uma forma linear esta saga: a obra começa num momento em que a família Cambará está sitiada no seu ninho histórico quando das lutas entre republicanos e federalistas em 1897 e depois com recuos e avanços em capítulos diferentes constrói toda a história destas gentes com grandes personagens e perfis psicológicos fortíssimos como Pedro Missioneiro, Ana Terra, Rodrigo Cambará, Bibiana Terra Cambará, Licurgo Cambará e Ana Valéria Terra que sem dúvida estão ao nível de outras figuras da literatura mundial. Um magnífico romance que deve ser lido não só pelo povo do Rio Grande do Sul, mas por todos os Brasileiros e Portugueses, sobretudo Açorianos.
Espero ter oportunidade de ler as sequelas desta saga: "O Retrato", e "O Arquipélago" que completam "O Tempo e o Vento" e penetram pelo século XX e onde seguramente a influência Açoriana se deve ir autonomizando e tornando-se cada vez mais Brasileira.