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quinta-feira, 21 de novembro de 2024

"Os Enamoramentos" de Javier Marías

 

Regressei ao meu escritor fetiche dos últimos dois anos, o espanhol Javier Marías, com o romance "Os Enamoramentos".

Maria Doltz habituou-se a observar a felicidade de um casal durante o pequeno-almoço que assiduamente comia no mesmo café em que ela passava antes de se dirigir ao seu emprego, algo que fazia parte da sua rotina e motivador para melhor enfrentar o trabalho, só que o casal deixou de aparecer e pouco depois descobre o assassinato do marido. No reaparecimento posterior da esposa no café, ela entabula uma conversa de condolências, o que lhe vai levar a uma visita a esta, a compreender o luto da mulher e a conhecer o melhor amigo do esposo. Situação que lhe abre portas para a descoberta de um segredo horripilante sobre a morte dele, à reflexão sobre o esquecimento dos defuntos de cada um e à evolução dos enamoramentos que o tempo traz aos vivos.

Como habitual nos livros de Javier Marías, não há pressa no evoluir dos acontecimentos, antes o texto deambula por reflexões em todos os momentos da narrativa, uma sucessão de pensamentos e casos encadeados por uma série de pormenorizações, de adjetivos e de sinónimos que emolduraram cada ideia e constroem parágrafos muito extensos. Um caudal de conceitos e meditações que fluem de modo indolente até se completarem e, de repente, interrompidos por situações de surpresa e choque que mudam o rumo da história e retiram o leitor da anestesia e modorra em que caíra.

Não conheço nenhum escritor que consiga ir tão profundo na análises que leva a cabo em matéria de consciência, memória e do potencial do comportamento humano para concretizar atos extremos e em Os Enamoramentos Javier Marías volta a fazê-lo com a sua habitual genialidade e mestria. Literatura como obra de arte no seu mais alto grau. Acabo sempre por adorar os livros deste autor e este romance não foi exceção.

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

"PRESAS" de Michael Crichton

 

"Vai haver um momento, algures no século vinte um, em que a nossa inquietação cheia de autoilusões vai colidir com o poder tecnológico em constante crescimento. Uma área em que isto vai acontecer é a zona de contacto entre a nanotecnologia, a biotecnologia e a tecnologia informática."

In Introdução de Michael Crichton ao romance "Presas"

Após quase 20 anos voltei ao norteamericano Michael Crichton, autor do famoso Parque Jurássico que deu origem a vários filmes. Enquadro o romance "Presas" no género de suspense e especulação dos ricos da evolução tecnológica e científica atual sobre a Humanidade por perda de controlo ou falta de ética do seu uso.

Jack Forman é um programador informático que perdeu o emprego devido a princípios éticos, passando a tomar conta dos seus 3 filhos em casa, enquanto a mulher, Júlia, está a desenvolver um projeto em nanotecnologia noutra empresa que pretende revolucionar a medicina com a introdução no sangue de câmaras de filmar inteligentes. Jack começa a desconfiar do comportamento da esposa, um dos seus filhos desenvolve uma doença estranha, Júlia sofre um acidente em circunstâncias dúbias e ele é contactado do ex-emprego para cooperar num programa informático que está a ter resultados indesejados. Ele descobre que é o mesmo associado ao projeto de nanotecnologia da mulher. Uma oportunidade para descobrir o que há de estranho com ela e o pedido de auxílio vindo de quem o despedira, pelo que aceita. Vai para o laboratório no deserto e percebe que a equipa perdeu o controlo daquilo que criara, a tecnologia ameaça o criador e a Humanidade.

O estilo narrativo é de um relatório quase horário de uma semana de acontecimentos, expostos de forma muito cinematográfica, sem grandes artifícios estilísticos que desviem a atenção, mas com diversos diálogos fáceis e informações acessíveis de conhecimentos científicos que mistura teorias reais com aspetos especulativos que apoiam a hipótese da trama, com uma sucessão de momentos inesperados que geram suspense em cadeia que prendem o leitor e o levam a suspeitar do perigo que espreita as personagens, a própria humanidade e a necessária luta entre os que permanecem livres e os reféns da criatura criada que evolui com a sua inteligência artificial (na obra distributiva).

Crichton nem sempre foi bem recebido pela cultura literária dominante e woke, chamou a atenção de determinados excessos para refrear excessos e talvez, nalguns casos, fosse mesmo negacionista. Contudo, sou um admirador da literatura que concilia a especulação científica em obras de suspense e terror e já há muito tempo que nenhum romance me prendia tanto à leitura como este.

Para quem viu ou leu Parque Jurássico e gostou, aqui está outra obra que agarra o leitor com a mesma fórmula e, apesar de ser ficção, leva-nos a pensar sobre as ameaças que a ciência pode trazer se não for eticamente controlada pelo investigador ou patrocinador. Tudo o que li deste autor neste domínio adorei. Presas não foi exceção.

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

"ABISMO" de Yrsa Sigurdardóttir

 


Procurei na biblioteca um livro policial nórdico para que me despertasse emoções, suspense e fosse apenas uma leitura de lazer para descansar da realidade, fui à descoberta da islandesa Yrsa Sigurdardóttir com este "Abismo" e o objetivo de me cativar e de me interessar foi conseguido.

Uma escola desenvolveu a atividade de enterrar uma garrafa em 2006 com as perspetivas das crianças sobre como seria a vida em 2016. Fim do prazo, ao desenterrar-se a cápsula do tempo, o diretor da escola depara-se com uma carta anónima com referência a uma série de mortes identificadas por iniciais e a ocorrer naquele ano. Avisa a polícia e esta, no princípio, pensou tratar-se de um devaneio, mas em pouco depara-se com vários crimes de extrema violência e o aparecimento de partes de um corpo, as vítimas parecem ligados a um caso que envolve a família do aluno identificado como o autor, só que um apagão informático do processo judicial  torna tudo muito difícil e o polícia Huldar e a psicóloga Freyja de crianças vivem dias difíceis nas suas instituições que dificultam a investigação em torno de algo muito sombrio que une toda esta teia e pessoas do alto da justiça. 

Escrito numa linguagem escorreita e simples, utilizando a técnica de deixar o leitor suspenso em momentos de grande tensão, a obra segue o estilo nórdico, com situações criminosas de violência física extrema sem ser necessário a sua descrição para se as imaginar, intercaladas com momentos da vida pessoal das principais personagens e suas tensões sentimentais, enquanto se suspeita de acontecimentos perturbadores que terão passado várias crianças e seus pais emaranhados num sistema de justiça disfuncional, cujas consequência desembocam vertiginosamente numa série de desgraças em série de ódio justiceiro que não olhou a meios, nem à dor de novas vítimas inocentes até ser descoberto.

Gostei, uma obra detetivesca, cujo suspense vai aumentando e com crimes chocantes de arrepiar sem descrições desnecessárias, pois alimentar a imaginação basta com as pistas deixadas na narrativa.