Excerto
"...Disseste-me também que eu era um deus. E eu sinto que sou. Ou sinto que estou sendo. E é uma coisa insuportável."
Acabei de ler a novela "O Físico Prodigioso" do português Jorge de Sena, obra inicialmente integrada na coletânea de contos do autor "Antigas e Novas Andanças do Demónio", mas que depois da queda da ditadura ficou com o seu texto definitivo, a ter vida própria e foi publicada autonomamente por vontade do escritor.
Uma novela que vai buscar as suas raízes em dois mitos antigos expostos em contos portugueses da idade média que o autor integra num só, numa narrativa do género fantástico, mágico e gótico.
Um jovem inocente e de beleza impressionante desperta a paixão no Demónio que lhe permite poderes fantástico de físico (mago/médico da idade média). Aquele ao banhar-se num lago é descoberto por três donzelas que o cativam para a sua senhoria, uma viúva retida no seu castelo e a definhar de uma doença que se diz apenas ser curada por um jovem belo e virgem. Aceite o desafio irá então desenrolar-se uma evolução orgíaca, a descoberta de um passado sangrento da castelã e momentos de bruxaria que desemboca num tribunal coletivo religioso com juízes (magníficas caricaturas de puritanos cheios de ruindade) que o julgará no obscurantismo da igreja com a intervenção do demónio numa luta entre o misticismo, o castigo da sujeição às tentações e a liberdade individual.
Uma narrativa onde a língua portuguesa é trabalhada com genialidade numa escrita criativa que vai da prosa à poesia com timbre medieval e textos paralelos que põem frente a frente o ocultismo da época, o erotismo e o misticimo religioso, puritano e castrador. Jorge de Sena cria uma trama que está entre um conto das mil e uma noites numa cultura cristã e um história gótica de terror e luta com a religião e o demónio, qual deles mais pernicioso ao homem e à liberdade neste contexto.
A novela, com pouco mais de 100 páginas, é seguida por uma pequena nota explicativa de Jorge de Sena sobre os mitos em causa e excertos dos dois contos medievais que serviram de inspiração a esta obra, o que permite uma compreensão mais vasta que a simples leitura da narrativa.
Uma obra diferente com insinuações eróticas tratadas na liberdade de um mundo fantástico como projeções de sonhos livres sem as inibições sociais e morais dos desejos, o que pode ferir sensibilidades, mas que me deu um enorme gozo de leitura, pela imaginação e o tratamento da língua lusa.