Terminei a releitura de "Memorial do Convento" de José Saramago, o único premiado com o Nobel da literatura de expressão portuguesa e para muitos o romance emblemático da sua obra de ficção. Pouco releio livros, se gosto muito da escrita opto por rever excertos, pois a surpresa no desenrolar da trama conta também muito para o meu prazer de leitor, mas este lera-o há cerca de 33 anos atrás, aliás, foi a minha estreia neste autor que depois tornei-me seguidor pontual por mais de uma década. Decorrido este tempo todo, tirando o tema e personagens principais, já pouco me lembrava do seu conteúdo e foi quase uma primeira leitura ao nível de pormenores e das cenas que se vão desenrolando na história. O exemplar que possuo, quer a capa, quer a editora, já nem correspondem às da imagem, pois os direitos editoriais foram transferidos para outra casa distinta da que o escritor foi fiel em vida. Na verdade possuo centenas de livros que não folheio há muito tempo e penso ter chegado ao momento de os redescobrir e optei começar por este.
A história tem como centro a razão de se edificar e os trabalhos de construção do Convento de Mafra, todavia em Saramago nada é uma simples narrativa. O escritor, além de romancear um conjunto de personagens que existiram à época: como o rei D. João V e família, o inventor Bartolomeu de Gusmão, o compositor Scarlatti e diversos membros do clero e nobreza; foca a trama em Baltasar Sete-Sóis, maneta, e Blimunda Sete-Luas, vidente do interior das pessoas, que se encontram num ato da inquisição, juntam os seus trapos e se tornam num casal sem as regras legais e morais da época. Estes vivem as dificuldades do povo sem instrução e servem de defesa das relações naturais sem obediência a regras exteriores aos elementos apaixonados ou acostumados entre si e ainda de denúncia das injustiças face à opulência da realeza e clero a coberto da religião e a escassez e riscos dos pobres e pessoas livres pensadoras sob a ameaça da inquisição. Na primeira parte teremos Bartolomeu Gusmão a ser auxiliado pelo par na sua invenção aeronáutica quando a tecnologia era vista como uma arte demoníaca e onde o sonho e a vontade do Homem estão acima das limitações físicas da Natureza e da castração religiosa.
Na segunda da obra o mesmo par integra-se no grupo de trabalhadores explorados na construção do monumento edificado à custa da extração da riqueza das colónias do império para glória de Deus no agradecimento pelo Seu papel de satisfação dos anseios e caprichos dos ricos em detrimentos dos pobres por Ele amados.
A escrita da obra é tipicamente ao estilo único criado por Saramago, mas agora com o tempo verifico que ainda tinha sido levado à exaustão alcançada em obras posteriores. O sarcasmo pícaro sobre a justiça, a ética e a moral sexual atravessam todo o texto, numa crítica mordaz, por vezes a rondar a brejeirice e irónica, e frequentemente alavancada em ditos populares. A denúncia dos defeitos e vícios do clero e realeza, a coberto de uma teologia interesseira destas partes, não é minimamente travada neste romance.
É sem dúvida um grande romance, um clássico da literatura mundial, nem sempre fácil de ler devido à forma narrativa e a uma forma única de realismo mágico exclusiva de Saramago, mas cheio de informações históricas e vale bem a pena o esforço, na releitura não sofri o choque da primeira vez em que me estreei no autor, mas mesmo assim continuo a gostar muito deste romance e foi o que mais me marcou à partida, mesmo que hoje prefira outros do escritor.