Excerto
"E a multidão que no Jardim dos Buxos entretinha o tempo, em nada se diferenciava das outras multidões: apenas não se viam - viviam no suspenso dos sons. Os que se individualizaram, como Dom Raymundo, o Cavaleiro, Dona Mafalda, Madeleine, etc. é porque em si sintetizavam a necessidade premente de continuar a história do mundo pelas vias da Criação."
"A Torre da Barbela" do português Ruben A., é um romance publicado em 1965, vencedor então de um prémio literário que caiu no esquecimento e agora foi reeditado como uma obra a redescobrir, não só pela sua reconhecida originalidade e temática, mas também por mostrar o papel do seu autor como um importante escritor que deu novos rumos ao evoluir da literatura em Portugal.
O romance é uma obra macabra, centrada em torno de uma torre nas margens do rio Lima no Minho que existe desde os primórdios de Portugal e casa de uma das famílias nobres mais importantes e participativas no evoluir da história do País até ao século XX: os Barbela. Durante o dia o monumento nacional é alvo de visitas diárias onde o guia/caseiro recebe excursões, discursa sobre a heroicidade dos Barbelas e promove as belezas e produtos locais; só que durante a noite são os antepassados ligados à Torre, ao solar e seus parentes próximos que saem dos túmulos e convivem entre si, amam, odeiam e mexericam independentemente do século em que viveram. Estes desfilam com todas as características individuais que tinham quando vivos, construindo um retrato satírico e psicológico das virtudes e defeitos dos fidalgos lusos e dos vícios sociais que moldaram este Povo.
Ruben A. pertencente a uma famílias de vultos da cultura portuguesa no século XX e numa linguagem mordaz mostra um Portugal tacanho, provinciano, sujeito publicamente ao clero católico e em segredo transgressor de toda a moralidade religiosa, uma hipocrisia falsa que inveja o estrangeiro e fala das virtudes e superioridade do seu País.
O autor foi um mestre na arte de escrever bem e utilizar ao máximo os recursos da língua combinada com a imaginação e coexistência de falares, mentalidades e tecnologias de diferentes épocas ao longo dos séculos e aqui extrema estas capacidades. Na obra, cada personagem está amarrada ao seu século: o cavaleiro medieval desloca-se a cavalo sem tal impedir que a sua amada viaje de carro e outro parente já use o avião; tal como numa guerra há a opção do uso da força no homem companheiro de luta de D. Afonso Henriques e os argumentos demagógicos e populistas de um político do século XX. Nesta estória cruzam-se amores infiéis, bastardos, homossexuais, amantes de soberanos, beatas, padres, santos, bruxas, cruzados e marinheiros, além de uma fábrica de enguias fumadas secular e muito mais.
Apesar destas impressionantes características do romance, da excelente descrição de muitas das belezas paisagísticas, do património cultural do Minho e da imaginação que por vezes me deslumbraram, também houve momentos que me cansaram por serem demasiado prolixas, mas valeu a leitura.