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terça-feira, 22 de maio de 2018

Mordomo das Festas do Espírito Santo

As coroas em 2012

Já várias vezes falei neste blogue da maior festa religiosa tradicional dos Açores, comum a todas as ilhas do Arquipélago que se realiza sempre no domingo de Pentecostes (50 dias após a Páscoa): as festividades em louvor do Divino Espírito Santo, mas que duram três dias no Faial, Pico e São Jorge e que há década têm oficialmente associado, na segunda-feira, o dia da Região Autónoma dos Açores.

Foto de grupo como mordomo em 2012

Sendo uma celebração religiosa de raiz popular, esta tradição de séculos tem como cerne o culto do Espírito Santo, simbolizado por uma coroa encimada por uma pomba, sendo os festejos organizados por irmandades de leigos, cuja sede se chama império, com os seus estandartes e bandeiras. O elemento que num dado dia assume a organização do festejos chama-se Mordomo, nesta terça-feira de 2018 assumo eu esta tarefa em representação de minha mãe, as celebrações, além de atos litúrgicos como missa e procissão, envolvem distribuição de esmolas, organização de uma refeição de sopas de caldo de carne e pão (Sopas do Espírito Santo), arroz doce e outras iguarias típicas, além de atividades lúdicas organizadas pela direção da irmandade.

Refeição em 2012 na irmandade do Império Amarelo da Ribeirinha

No histórico de Geocrusoe encontrarão muitos outros posts sobre esta celebração de séculos que os Açorianos já exportaram para o Rio Grande do Sul e Santa Catarina no Brasil, Nova Inglaterra e Califórnia nos EUA, Ontário e Colúmbia Britânica no Canada, entre outras partes do mundo. Se quiser saber mais consulte aqui símbolos, aqui sopa, aqui estandarte, aqui ritos religiosos, aqui impérios, aqui lendas. Pode igualmente clicar na etiqueta "Espírito Santo" onde haverá mais dissertações sobre o tema.

sábado, 12 de maio de 2018

"A Ilha do Doutor Moreau" de H. G. Wells


Excertos
"No entanto sabia que, se toda aquela dor estivesse a ser experimentada no aposento ao lado por alguém sem voz, acredito que poderia conviver com ela. É somente quando a dor alheia é dotada de voz e põe os nossos nervos à flor da pele que a piedade brota dentro de nós."

"Suponho que existe algo na forma humana que atrai a nossa mentalidade artística de modo mais poderoso do que uma forma animal qualquer. Mas não me restringi a produzir humanos."

"O tipo de inteligência que consigo em geral é de nível muito baixo."

Confesso que durante anos não li "A ilha do Doutor Moreau" de H. G. Wells por pensar que estaria perante uma obra juvenil, erro meu. Esta obra pode de facto ser lida de forma limitada como uma estória simples ou resultar numa adaptação ao cinema acéfalo dos efeitos especiais que despertam emoções sem regar a razão, mas o texto e a trama do livro inclui grandes reflexões ao nível de questões de ética na investigação científica e os riscos que a humanidade pode correr se a sua curiosidade não for temperada pelo bom-senso.
Como pessoa formada em ciências, este romance alerta que o querer saber e experimentar deve ter limites deontológicos. O primeiro excerto que acima publiquei aponta também para outro problema do comportamento do homem perante o sofrimento da humanidade e a sua consciência.
Após um naufrágio, o protagonista relata como foi salvo e despejado numa ilha onde um cientista obsessivo leva ao extremo a tentativa de transformar animais em humanos. Claro que esta aberração quando implementa só poderia levar à catástrofe e Wells é um escritor genial em contar histórias enquanto põe o leitor a refletir sobre a ética em ciências.
Tratando-se de uma obra anterior à descoberta da genética, a ferramenta encontrada para alcançar o fim pretendido parece-nos hoje arcaica, mas com manipulação de genes ou formas para o homem criar uma biodiversidade ao seu gosto de criador as questões de ética são as mesmas e são estas que saltam junto com a aventura do nosso náufrago.
Um livro muito fácil de se ler devido a uma narrativa límpida, elegante e descritiva sem recurso a grandes criatividades de escrita que perturbem o desenrolar dos acontecimentos e as reflexões são feitas de uma forma tão bem enquadra no evoluir da história que não dificultam a leitura. Gostei muito espero ainda ler mais obras deste escritor e um dos pais da ficção científica que vai além do entretenimento.

segunda-feira, 7 de maio de 2018

"Obra Reunida" de Juan Rulfo


Excertos
"Esta aldeia está cheia de ecos. Parece que estão fechados no interior das paredes ou por baixo das pedras. Quando andas, sentes que vão pisando os teus passos. Ouves estalidos. Gargalhadas. Umas gargalhadas já muito velhas, como estivessem cansadas de rir. E vozes já gastas pelo uso."
in Pedro Páramo, novela.

"San Gabriel sai do nevoeiro húmido de orvalho. As nuvens da noite dormiram sobre o povoado procurando o calor das gentes. Agora está para sair o sol e a névoa levanta-se devagar, enrolando o seu lençol, deixando fios brancos em cima dos telhados. Um vapor cinzento, apenas visível, sobe das árvores e da terra molhada atraído pelas nuvens;..."
in "Na madrugada", conto.

"Quem exercia este ofício era Dionisio Pinzón, um dos homens mais pobres de San Miguel del Milagro. Vivia numa casinha do bairro do Arrabal, na companhia da sua mãe, enferma e velha, mais pela miséria do que pelos anos."
in O galo de ouro, novela.

O mexicano Juan Rulfo é considerado o pai do estilo realismo mágico da América Latina e o escritor que segundo Gabriel Garcia Marquez (GGM), mais o terá influenciado. Este livro, além um um preâmbulo de GGM, junta três obras deste escritor: as novelas "Pedro Páramo" e "O Galo de Outro", bem como o conjunto de contos publicados sob o título "A planície em chamas" ou "O Llano em Chamas". No fundo o conjunto da sua produção literária que abandonou a sua criação no auge do seu sucesso.
A primeira novela é de facto surpreendente, narra a vida de Pedro Páramo, o homem forte numa terra rural onde ele põe e dispõe de tudo e de todos, inclusive das mulheres e das vida e propriedade dos homens de forma incólume, entretanto na sua vida há uma paixão marcante que no seu domínio totalitário teve de esperar décadas para ser atendida. A história é contada como memórias e vozes de consciência dos colaboradores, das vítimas e até dos lamentos dos mortos, expostas de forma dispersa, sem uma sequência cronológica nem respeito pela continuidade da trama, misturando situações díspares, o real e o mágico para no fim se completar o quadro num estilo de escrita que é de facto ímpar e literariamente de uma riqueza difícil de explicar.
A seguir seguem-se vários contos pouco extensos e passados na planície semiárida do interior do México, com momentos da guerra dos cristeros, outros de vinganças, outros de amores que dão um ideia do que seria a vida no coração profundo do país e distante dos centros urbanos, normalmente pautado pela pobreza e desolação, só que todos eles são magnificamente escritos.
A última novela conta a vida de um indigente desprezado por todos que de pregoeiro toma conta de um galo de combate derrotado e ferido e o torna num vencedor, então começa a sua peregrinação onde encontra uma mulher cantadeira que lhe dará a sorte e o azar do futuro da sua vida. Novamente o realismo mágico impõe-se associado a uma escrita de um génio.
Gostei do livro e tal como Gabriel Garcia Marquez se deixou maravilhar por Juan Rulfo, vale a pena conhecer esta genialidade, cujas obras se limitam a poucas centenas de páginas brilhantes, felizmente aqui reunidas, embora também existam em separado. Soube-me a pouco o que de facto este mexicano legou à literatura latinoamericana, pena não haver mais obras.primas de Juan Rulfo.

terça-feira, 1 de maio de 2018

"Pão com Fiambre" de Charles Bukowski


Excertos
"A primeira criança da minha idade que conheci foi no jardim de infância. Eram todos muito estranhos, riam e falavam e pareciam felizes. Não gostava deles."
"O primeiro livro de jeito que encontrei foi de alguém  chamado Upton Sinclair. As frases eram simples e falava com raiva. Escrevia com raiva. Escreveu sobre os matadouros de Chicago. Dizia as coisas de forma clara e sem artimanhas."
"..., aprendi que os pobres serão sempre pobres. Que os ricos quando lhes cheira a pobre ainda se divertem com isso."
Acabei de me estrear no escritor que classifico de contracultura: Charles Bukowski, através do seu romance, tido como autobiográfico, "Pão com Fiambre", no Brasil "Misto Quente" e no original "Ham on Rye", onde se narra a infância e juventude do seu alter-ergo que surge em vários das suas obras, a personagem Henry Chinaski.
Henry, nascido na Alemanha nos anos 1920 cresce desde muito criança num bairro pobre de Los Angeles, com um pai autoritário, violento e incompreensivo das necessidades do filho, que impede até a sua integração social, e uma mãe submissa. A crise financeira arrasa a comunidade com desemprego e miséria. Na escola reinam os maus resultados de estudos, o ambiente é de guerra dos fortes e Chinaki sente-se rejeitado. Mesmo assim, luta para sobreviver, tentando tornar-se forte e vencer nesta luta diária.
Na adolescência um acne descomunal afasta-o das mulheres e da escola, tem uma sexualidade frustrada e terá a descoberta do gosto por escrever, mas o álcool e a violência juvenil continua a marcar o seu dia a dia. Ingressa na Universidade por falta de outras alternativas... sai de casa quando o pais espia os seus escritos duros que não poupam ninguém. Esta também foi, na generalidade, a vida de Bukowski antes do sucesso que mais tarde alcançou num género muito próprio.
O segundo excerto acima é também a característica geral da escrita do livro, com um humor ácido e delinquente, por vezes com recurso ao calão e à brejeirice grosseira, típica de meninos de rua e famílias disfuncionais. Ao contrário de Kerouac, não há drogas além do álcool e tabaco.
Apesar de amargo, gostei, não deixa de ser uma obra que dá conhecimento de uma realidade difícil e violenta de muitos estratos desfavorecidos da população urbana, exposta de uma forma crua, dura, por vezes grosseira, mas numa feita de uma forma divertida.